“Contrariamente à experiência patriarcal, as primeiras referências da humanidade não são os homens, mas sim as mulheres, por isso é em relação a elas, que eles – os machistas – se definem”.
Conhecendo perfeita ou vagamente os livros de Paulina Chiziane, sobretudo o Niketche: Uma História de Poligamia – como os conheço – e, ao mesmo tempo, sendo eu, um “moçambicano de gema” é quase impossível viver sem nenhum incómodo em relação à nossa existência sociocultural. Temos um país, ou mesmo uma sociedade, tradicionalmente machista, de orientação patriarcal em que, por essa razão, várias correntes de opinião (formal e/ou informal), vezes sem conta, recorrem ao espaço público para depreciar o machismo e algumas das suas práticas deploráveis que em nada dignificam a existência humana, muito em particular as relações entre os homens e as mulheres.
A par disso, em certa ocasião, no seu jeito irreverente, a rapper moçambicana Dama do Bling desprezou toda a sociedade – a moçambicana – por, no seu entender, determinar regras para a postura social feminina, sem que, antes de mais, ela, a própria sociedade, consiga comandar-se. Paulina Chizine, uma contadora de histórias, que fala sobre temas diversos com enfoque para a poligamia, o amor, o lobolo, Moçambique, África, a mulher, o homem, a religião, a tradição, a espiritualidade, o machismo, o feminismo, as sociedades patriarcais, entre outros assuntos, exerce essa cidadania há bastante tempo.
Em Maputo, e quase em todo o país, existem organizações criadas a fim de dirimirem conflitos que surgem da relação homem e mulher, marido e esposa. Até há uma lei sobre a violência doméstica contra a mulher e a criança. Grupos de teatro já fizeram peças que avaliam a possibilidade de se ter uma Presidente na República. Neste momento, este debate está ao rubro nas principais correntes de opinião. Ao que tudo indica, Moçambique está a ficar um país feminista. E o conceituado ensaísta moçambicano, Cremildo Bahule, com a sua nova obra “Literatura Feminina, Literatura de Purificação: O Processo de Ascese da Mulher na Trilogia de Paulina Chiziane” introduz-se – a um nível mais alto – nesta discussão contemporânea.
Eu, como leitor das obras de Paulina Chiziane, e como acompanhante de todos os tipos de crítica, quer seja em jeito de teatro, quer seja em musical, quer seja ainda em literatura, que se fazem sobre as mesmas, e como moçambicano, sempre tive um problema que reside comigo sem nenhuma solução à vista. Talvez seja, até, uma ideia fixa: nesta discussão toda, para mim, o problema da mulher moçambicana – sobretudo nesta questão do machismo, da existência de uma sociedade tradicionalmente machista ou até de todos os imbróglios que advêm da poligamia, se quisermos percebê-los como tais – é criado pela própria mulher.
No ensaio sobre o qual comento, Cremildo Bahule (p. 42) simplifica o que pretendo dizer nas seguintes palavras: a mulher “torna-se vítima do caminho que ela própria construiu”. O autor, talvez induzido pela escritora Paulina Chiziane, cujas obras são analisadas, escreveu um ensaio multitemático e transversal: aborda a mulher, o feminismo, a tradição, o lobolo, a música, o suicídio, a sexualidade, o homossexualismo, a prostituição, entre outras unidades de assuntos sobre os quais não tenho tempo nem espaço para analisar neste jornal.
“Literatura Feminina, Literatura de Purificação” é um livro que, dentro da minha experiência humana e do meu conhecimento sobre o cosmos, possui três méritos sobre os quais discutirei mais adiante. No entanto, porque na sua conclusão, Cremido Bahule também denunciou um aspecto muito sério – sobre o qual apelo para que não se faça uma interpretação literal – quando (p. 161) afirma o seguinte: “contrariamente à experiência patriarcal, as primeiras referências da humanidade não são os homens, mas sim as mulheres, por isso é em relação a elas, que eles – os machistas – se definem”.
Repito, apelo para que não se faça uma interpretação terra a terra sobre esse assunto. E, se for possível, antes de mais, convoque-se o autor para esclarecer a passagem porque se se confrontar essa informação com o que se revela na Bíblia (esta obra também é utilizada pelo crítico no seu ensaio), em Génese 2. 18: ‘E Jeová Deus prosseguiu, dizendo: “Não é bom que o homem continue só. Vou fazer-lhe uma ajudadora como complemento dele”’, encontra-se uma contradição.
Esse paradoxo literal que existe entre os pontos de vista do Criador e do criador, minimizam a minha preocupação já referida pelo autor na página 42 – a mulher tornar-se vítima do caminho por si construído – fazendo-me pensar que, por cima de toda a narrativa, até, sobre a origem do pecado, a mulher tenha sido injustiçada em toda a história secular.
Aqui há, sim, uma contradição porque embora a Bíblia não se refira sobre quanto tempo o homem, neste caso Adão, viveu solitário – ou seja, sem a mulher – a leitura que faço remete-me ao facto de que até à data da origem do pecado, em face do consumo da árvore do conhecimento do certo e do errado – que não é, necessariamente, o acto sexual entre Adão e Eva como algumas correntes de opinião erradamente afirmam – o homem já havia vivido vários anos sozinho.
Quase havia cumprido parte grande da sua missão – a de dar nomes às coisas que existiam na terra e no mar. Portanto, indo por essa lógica, as primeiras referências da existência humana devem ser masculinas e, se quisermos, machistas, o que não retira mérito à dependência que os homens têm em relação às mulheres. As mulheres complementam-nos. Ou melhor, completam-nos.
Somos todos feministas
Quase totalmente, no seu ensaio, Cremildo Bahule afirma que todos somos feministas. E argumenta (p. 43): “a efeminização é um acto humano, pois qualquer ser humano provém de uma fêmea”. Por essa razão, o seu livro procura – de todas as formas – sublimar a mulher. Quando escrevo, e concordando com as palavras do crítico da literatura, que a solução para os problemas da mulher se encontra nela em si, estou, por um lado a expressar alguma admiração para o facto de a mulher conseguir magoar-se com, por exemplo, a poligamia e, mesmo assim, continuar a defendê-la (p. 70):
“Neste bairro ela ganha o seu pão vendendo num mercado informal, para cuidar dos seus dois filhos: Phati e Joazinho. Filhos de pais diferentes. A diferenciação de progenitores traz nela a imagem de defensora da poligamia”. Aqui o autor cita uma passagem do livro Balada de Amor ao Vento de Paulina Chiziane, na página 108, para consubstanciar a sua sentença.
Mas antes, na página 60 do seu ensaio, Cremildo Bahule expõe uma situação patente em Balada de Amor ao Vento (p. 22), que me faz – mais uma vez – visualizar a mulher moçambicana como a mentora da preservação desta sociedade tradicionalmente machista: “Eu aceito ser a segunda mulher, ou terceira, (...). Se tivesses dez mulheres eu aceitaria ser a décima primeira. O que eu quero é estar ao teu lado”.
Os méritos da crítica
Na sua argumentação e demonstração desse “Processo da Ascese e da Purificação da Mulher” na trilogia de Paulina Chiziane, refiro-me às obras Balada de Amor ao Vento, O Sétimo Juramento e Niketche: Uma História de Poligamia, por si analisadas, Cremildo Bahule (p.120) enfatiza que “a humanidade depende do útero. Sem o útero a humanidade é vazia”. Para o crítico é isso o que a contadora de histórias nos diz: “amigos, sem útero não há existência humana”.
E, recuperando a história da mulher moçambicana enquanto defensora da poligamia, faz todo o sentido a luta travada por Paulina Chiziane sobre a qual recai a reflexão de Cremildo Bahule. Afinal, esta batalha contra a “amargura da solidão e a sensação de perda de identidade e de estar partida (a identidade), faz com que a mulher se sinta fragilizada e fragmentada, em mil pedaços, criando dentro de si um furacão de sensações que faz com que ela acredite que dentro dela há muitas almas que a ressuscitam” (p. 46).
Trata-se de uma experiência dura e difícil de manejar, a partir da qual se visualiza o segundo mérito da análise de Cremildo Bahule (p. 46 e 47) neste ensaio, na medida em que – enquanto, nesta visão Bahuliana, “os escritores e escritoras, de todas as épocas, sempre olharam para a morte como uma solução sublime para as suas frustrações” – o ensaísta explica que “Apesar das frustrações, Paulina Chiziane nunca buscou o suicídio como uma saída harmoniosa e uma bela solução para tantos males”.
Aqui o crítico projecta Paulina Chiziane, uma mulher, não somente como a fonte da vida, mas também como a rocha sobre a qual a sua eternização se edifica. Ou seja, se é na mulher onde a vida origina-se, então, será nela onde se deve tornar perene. Estou, em certo sentido, a colocar em causa o princípio segundo o qual “é na mulher onde tudo começa, mas também é nela onde tudo acaba”.
Levando esta discussão para uma esfera cada vez mais global e globalizante, para o planeta da humanidade, a terra, voltamos ao primeiro mérito deste ensaio. Cremildo Bahule retoma, com um estilo particular, a discussão renascentista propondo não somente a existência de um Homem – incluídas as mulheres – amante da terra e da vida terrena, mas uma humanidade que se purifica para cumprir o desiderato do Criador – a vida eterna.
Nesse sentido, Cremildo Bahule (p. 44) escreve o seguinte: “O Homem moderno, apesar de estar fragmentado, acredita no amor. Não quer amar só por amar, sentir o aqui e o agora, sem a inútil preocupação com o perene e com o eterno, pois as lições que lhe deu a vida não deixam lugar à condescendência alguma”. Melhor explicado, “Neste campo do amor passageiro, todos nós (...) desejamos que o amor seja uma expressão romântica, uma expressão pura, única, eterna, para a vida inteira e além”.
Para a família Bantu, a uma hora dessas, este discurso é meritório porque segundo o ensaísta (p. 82): “O africano acredita na reencarnação. É por isso que ele – grifo nosso – deve ser feliz, seja como for, custe o que custar. Hoje e neste mundo”. Ou seja, aqui se liberta o africano do desespero em que se encontra: esta ideia de viver o agora porque não se conhece o amanhã. Por fim, o terceiro e o último mérito da crítica de Cremildo Bahule aqui destacado – deve haver outros – tem a ver com a proposta que o autor faz em relação à necessidade de se corrigirem algumas práticas que a tradição implanta na nossa cultura. Nós temos de ter a consciência de que somos seres cultos, dotados de cultura, para que possamos saber manipular da melhor forma a nossa cultura. É isso o que Bahule faz.
Recorrendo a uma passagem do livro O Sétimo Juramento, na página 59, o crítico da literatura explica: “Entre os bantus, quando as raparigas nascem são recebidas sem alegria porque não perpetuam o nome de coisa nenhuma”. Percebe-se aqui uma prática de carácter hediondo, embora tradicionalmente esteja estabelecida. Com argumentos válidos e lúcidos, Bahule (p. 88) insurge-se contra isso: “Não é possível uma rapariga valer coisa nenhuma. A rapariga, a mulher, ela é a ponte da continuação e da constituição da espécie, da família, do grupo étnico e da tradição inteira”.
E na tentativa de perpetuar este erro da tradição, contra o qual Bahule se rebela, no seu O Sétimo Juramento, Paulina Chiziane (p. 59) escreve: “Existem muitos milionários no mundo, capazes de entregar todo o ouro e todas as libras esterlinas que possuem para produzir um filho varão que perpetue o nome da família”. Por essa razão, na sua trilogia (p.88), o analista considera: “Os bantus por vezes esquecem-se de um pormenor: a mulher deve ser honrada e não vendida. (...) Os bantus devem voltar à lucidez, à verdadeira transparência da mulher, fazendo o que é mais legítimo na tradição: o lobolo”.
Com uma literatura vibrante a actuante, Paulina Chiziane é caracterizada pelo ensaísta (p. 76) como “uma escritora complexa. Tem um temperamento doentio, sensibilidade exacerbada, intensidade cerebral de visão febril, nervosa na sua impressionabilidade artística, aflitiva de análise e psicologia mórbida, atormentada pela preocupação mescla do raro, do macabro, do horripilante e até do sórdido”.
“Literatura Feminina, Literatura de Purificação” – o ensaio de Cremildo Bahule sobre a trilogia Balada do Amor ao Vento, O Sétimo Juramento e Niketche: Uma História de Poligamia, livros de Paulina Chiziane – é a mais nova e segura ponte para se compreender a literatura da nossa contadora de histórias.