Quando, numa perspectiva comparativa, se fala sobre a produção artística entre um conjunto de países, incluindo o nosso, é voz comum afirmar-se que em Moçambique há mais condições para a improdutividade. Em contra-senso, remando contra a maré, as nossas pepitas humanas que se dedicam ao sector provam o contrário. Natércia Chicane é um exemplo.
A jovem cineasta moçambicana, Natércia Chicane, desenvolve uma relação profunda com as artes. Com efeito, vive experiências incríveis, e, presentemente, afirma que nem a força divina pode desprovê-la do seu dom. Natércia Chicane proferiu do seguinte modo as palavras traduzidas no parágrafo segundo: “Quando a alma de um artista se reveste de arte, nem a força divina pode tirá-la”.
Além de cineasta, Natércia é poetisa e como tal também tem a mania de usar a poesia – ou, pelo menos, assim pensa – para falar sobre os problemas dos oprimidos, muitos dos quais sem o poder de se fazer ouvir. Nas formas de arte em que esmera a sua actuação, Chicane aborda assuntos cujas realidades, em certo sentido, fustigam a sociedade moçambicana.
Trata-se de histórias de vida do nosso quotidiano: o desemprego, a ganância, a riqueza, a pobreza, o sexo, o amor, a solidão, bem como os seus desdobramentos na vida das pessoas. Natércia Chicane impõe a si mesma a missão de utilizar a arte – com enfoque para o cinema e a poesia – para expor factos que revelam as vivências dos moçambicanos, incluindo as dificuldades enfrentadas pelos artistas deste país que se debate com o problema da falta de financiamento para a sua produção.
Em contra-senso, a produção das artes rema contra a maré e, transpondo todas as dificuldades, cresce continuamente. Mulher com grande atenção no tocante a problemas que se enfrentam no cinema, de modo particular, e, de modo geral, em todos os sectores de produção artística, Natércia Chicane fala sobre o contexto que retarda o desenvolvimento do ramo em que actua:
“Em Moçambique é difícil que se aprimorem as performances dos artistas, porque não há clareza nos critérios do acesso ao financiamento. Esta realidade sufoca os jovens. Os novos talentos. Para dar o seu apoio, os financiadores agem mais em função do nome de quem solicita e não de acordo com a qualidade e a pertinência de auxiliar a produção das artes, em si”.
A relação de Natércia com o cinema parte do seu grande interesse pela escrita, sobretudo a poesia e os contos, que – num processo de advocacia pelos direitos dos oprimidos – lhe possibilitou fazer a exposição dos seus problemas para que fossem conhecidos, e, em seguida, defendê-los.
Sobre o seu primeiro documentário, intitulado “Alface e Couve”, Natércia explica que a história realça o sofrimento dos moçambicanos na luta contra a pobreza. O protagonista é um jovem pobre, muito batalhador, cujo ofício – para transpor as suas adversidades – é o comércio informal. Com um carrinho de mão, durante o dia, o miúdo percorre imensas distâncias a fim de fornecer produtos como alface e couve aos residentes da urbe. Porque disso depende o seu bem-estar, o rapaz tinha que transpor todos os obstáculos – incluindo os relacionados com o estado do tempo. Com sol ou chuva, ele circula na cidade vendendo os seus produtos.
Natércia, que acompanhou as vivências do referido personagem, tendo-se convencido de que uma forma de prestar tributo a todos os que, honestamente, procuram ganhar a vida, afirma que utilizar o cinema para infundir essa experiência é, para si, algo marcante na medida que lhe deu a possibilidade de vivenciar de perto um exemplo de como a humildade e a dedicação podem ser orientadas para ultrapassar o sofrimento. E é importante aqui sublimar o valor da humildade porque, segundo Chicane, a sua falta, sobretudo no seio da juventude, concorre para a geração de uma frustração precoce desgraçando as suas vidas – o que contribui para que os mesmos se envolvam em práticas de grande risco de vida: a prática da criminalidade e a prostituição “pura e simplesmente porque não querem passar vergonha na vida”.
Além da obra “Alface e Couve”, Natércia Chicane tem um segundo filme. Uma curta-metragem intitulada “Johana: A terra que roubou os nossos maridos”. Aqui está-se diante de um curto relato de dona Alice que – a par de muitas moçambicanas – vê o seu marido abandoná-la com destino a África do Sul, onde, supostamente, procura emprego nas minas de ouro para garantir melhores condições de vida à sua família. O drama é que “alguns não regressam ao país. E dentre os que regressam, se não estão mortos, retornam à sua terra-natal falidos”. O que significa que tornam a vida dos seus próximos miserável.
Neste sentido, “Johana” é uma história intimamente nossa na medida em que todos nós os moçambicanos conhecemo-la, ou vivemo-la. Não há ninguém que não conheça um vizinho e ou um familiar que não tenha passado por situações desta natureza. Eu, por exemplo, documentei essa narrativa porque vivi esta realidade”. Natércia Chicane ama as artes e, como tal, possui um ponto de vista particular sobre as mesmas. No entanto, apesar de que – para si – esse amor funciona como uma espécie de força motriz para que continue o seu activismo, o cenário em que actua em Moçambique gera em si muitos receios. Ou seja, a dificuldade que há na área do cinema no país obstrui a materialização dos sonhos de vários realizadores.
“O Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual (INAC) não financia a produção cinematográfica em Moçambique. Mas apoia-a disponibilizando o equipamento necessário, os espaços para a realização de ensaios e filmagens, o que, de certa forma, representa um considerável auxílio – mas não faz um artista”, considera Natércia quando questionada sobre o papel, presentemente, exercido pelo INAC na área em que actua. O valor didáctico e pedagógico que as suas obras possuem contribui para que as mesmas sejam reconhecidas em diversos quadrantes do país e do mundo, com enfoque para as instituições de especialidade.
Prémio Nosside
Antes do seu activismo no cinema, ainda no ensino secundário, Natércia Chicane revelava particular sensibilidade em relação à escrita. Por isso, já escrevia textos em géneros como a poesia, o conto e a crónica. “Comecei a dedicar-me à escrita aos 20 anos de idade. Nessa altura, já compunha textos com alguma mensagem. Mais tarde, depois de aperfeiçoar o meu estilo, o que dependeu de muita leitura, iniciei a publicação dos textos em alguns jornais ao mesmo tempo que os recitava em eventos culturais”, refere.
Para Chicane, a sua poesia é actuante porque resulta do que a sua mente lhe manda escrever em função do que a realidade social produz. Portanto, é uma poetisa reactiva: “Sempre me esforcei para utilizar a poesia para revelar tudo o que sinto perante o que vivo. É um exercício espontâneo, o que significa que escrevo quando estou inspirada”. Natércia Chicane já tem uma colecção de textos suficiente para publicar o seu primeiro livro – A Dança do Amor, como se chama – estando, presentemente, à espera de financiamento.
“A edição de livros em Moçambique tem custos onerosos e, por essa razão, não suportáveis por um escritor comum. Neste sentido, ainda estou refém da boa vontade dos patrocinadores”, diz. A par de outros jovens moçambicanos, com o texto Sonhos Verdes, Natércia Chicane foi congratulada na Antologia do Prémio Mundial de Poesia Nosside, na edição de 2011, com uma Menção Especial.
Uma nova produção
“O Casamento da Vanessa” é a sua nova produção cinematográfica, ainda em rodagem. “Quem não conhece alguém que já tenha sido vendido, pelos seus pais, para satisfazer os interesses ou saldar as dívidas paternas? A nossa sociedade é composta por pessoas muito ambiciosas”, refere a explicar conteúdo da obra.
A personagem da história, Vanessa, nasceu numa família gananciosa e muito pobre. Para pagar algumas dívidas e para alimentar os seus vícios, o seu pai Tomás vende-a como esposa a um idoso. Trata-se de uma história intrigante que será exibida num evento de retrospectiva da produção cinematográfica da Associação dos Cineastas Moçambicanos, ainda neste primeiro semestre de 2014, em Maputo.