Na cerimónia da publicação da sua nova obra, intitulada Rainhas da Noite, o escritor João Paulo Borges Coelho qualificou o presente como “uma ameaça constante ao homem”. No entanto, não é por isso que, na apresentação do livro, o académico moçambicano, Almiro Lobo, ‘acusou-o’ de “fazer o garimpo do tempo a costurar memórias”.
A obra chancelada pela Ndjira, editora do grupo Leya, foi recentemente a razão que moveu uma multidão de leitores – entre familiares, amigos, estudantes e colegas de trabalho – a superlotar o Centro Cultural Português, Instituto Camões, onde foi realizada a cerimónia do seu lançamento.
Enquanto uma obra literária, Rainhas da Noite é uma assembleia de saberes que reúne uma infinidade de assuntos, cruzando o pretérito e o presente. Segundo o autor “o livro fala sobre a nossa difícil relação com o passado. O conflito entre a lembrança testemunhal e os documentos escritos. Os arquivos. Aborda a Maputo hodierna e os conflitos intestinos que a atravessam. O poder. Se calhar o livro trata disto e de muitos outros assuntos que, no entanto, juntos não dariam conta do seu tema global”.
Assumindo que se sente constrangido sempre que o questionam sobre o conteúdo e o título dos seus livros – “porque, de facto, eu também não sei” –, João Paulo Borges Coelho afirma que “o tema deste livro podia ser as mulheres brancas em ambiente colonial; o distrito de Moatize, no final dos anos 1950, quando tinha uma pequena mina em galeria. Presentemente, aquele distrito está a observar uma profunda transformação. Tornou-se uma coisa maciça a céu aberto. Um fim do mundo”. O que se diz sobre o livro?
“Rainhas da Noite é daqueles livros que arrebatam. O problema maior não é começar a ler. É conseguir parar de o ler. O criador deste romance age, por vezes, como um arquitecto que idealiza vários ancoradouros e constrói diversos apeadeiros. A curiosidade engendrada pela técnica narrativa leva o leitor a obedecer às instruções de um diligente capitão de bordo”, refere Almiro Lobo.
Além da apresentação de Almiro Lobo, Rainhas da Noite não teria tido melhor apresentação. Esta personalidade é um académico, conhecendo, por isso, a importância do acesso à literatura. É por essa razão que, na ocasião, inspirado pelo livro, exerceu alguma cidadania: “A multiplicação de vendedores de livros nas esquinas da cidade parece, estamos no universo da literatura, sugerir que se investe pouco em bibliotecas e livrarias públicas. Sendo 2014 um ano particularmente fértil para a retórica e para a ficção, fico a aguardar que alguma promessa indique a quantidade de bibliotecas públicas erguidas, recuperadas e apetrechadas nos próximos cinco anos”.
Magoados pelo tempo
De todos os modos, a preocupação com a preservação da literatura é manifestada, de um modo mais elaborado, por João Paulo que tem informações de que – em muitos lugares da terra – “a literatura está em vias de extinção, porque vivemos a segunda época das luzes, em que vigora a tecnologia. Acho que estamos diante de luzes muito fortes que nos deixam quase cegos”.
Partindo desse pressuposto, o autor retoma o tema da crise que, actualmente, se vive em relação aos dias actuais: “Suspeito que isso esteja a ocorrer porque vivemos um momento em que as pessoas parecem estar zangadas com o presente. Hoje, o presente configura uma vaga ameaça à saúde, ao salário. Também enfrentamos a ameaça das guerras, da política, da crise, da polícia, dos ladrões... tudo ameaça-nos. E o que há de bom (como disse o Almiro somos todos radiosos), eles prometem-nos. Deve ser por isso que estamos com muita pressa de atravessar este presente para chegarmos ao futuro. E isto provoca todo este desconforto”.
Maldizer o passado
Uma perspectiva de análise do livro Rainhas da Noite feita por Almiro Lobo mostra-nos que a mágoa que se tem em relação ao tempo, nos dias actuais, não se restringe ao presente. Também envolve o passado. Senão percebamos: “Como é que olhamos e nem sempre vemos esse passado? Como só vemos o passado que queremos ver ou somos capazes de ver, costurando, com pudor, uma perigosa amnésia? Há, parece-me, uma espécie de erosão de tudo o que não é épico. Essa evaporação do não épico é igualmente contraproducente, na justa medida em que não nos protege da repetição de gestos antigos, mesmo porque, não havendo memória, o antigo vai parecer novo, inédito e original. Rasuramos as lições que podemos colher dos momentos sombrios e cinzentos da nossa existência. Costuramos uma memória maniqueísta que se pode tornar assassina, como as Identidades Assassinas de Amin Maalouf”.
E não lhe faltam argumentos: “Se outros sintomas não houvesse, bastaria olhar para a omissão ou o desinvestimento na recuperação ou manutenção de edifícios cuja arquitectura remonta ao chamado ‘tempo colonial’”. De qualquer modo, e Rainhas da Noite é uma prova disso, Almiro Lobo está animado com o facto de em Moçambique haver escritores que remam contra a maré. Tais autores “impedem que a fábrica de papéis, que era o Arquivo Municipal neste romance, se transforme em fábrica de ‘produção do esquecimento’”.
Diz o académico que apresentou o romance que “vejo em Rainhas da Noite o nosso passado colonial, por via de uma metonímia – Moatize –, com famílias de funcionários superiores da companhia carbonífera, numa plataforma giratória, a Casa Quinze, gerida por Annemarie Simon, esposa do diretor-geral, em intercâmbio com as imperfeições deste tempo que também é nosso”.
E, com esta base, Lobo conduz-nos aos méritos do livro de João Paulo: “O retrato é de tal modo verosímil, que nos esquecemos que esta é uma obra de ficção. São slides que tornam visíveis as barracas, as enormes quantidades de lixo, os ‘chapas’ e os mylove, a multidão dos maziones nas suas cerimónias à beira da praia, os discursos da maldita política feitos só de promessas, a excessiva burocratização, uma juventude que, por qualquer razão, deixou de respeitar os mais velhos, etc. Quem sabe da cidade de Maputo reconhecerá esse retrato”.
A solução
Sim! De facto, a nossa sociedade mostra-nos que vivemos num ambiente confuso. Problemático. O exemplo de que enquanto não absorvido, através da leitura, o romance é um problema nosso, presente, pode não parecer coerente para muitos de nós.
Mas a literatura – como toda a arte de verdade – é configurado por João Paulo como um caminho para a solução de muitos problemas socais dos nossos dias. Ou seja, “ela pode ajudar-nos a andar bem mais de vagar, porque não se resume àquele enredo descrito racionalmente. Procura accionar outras forças discretas que nós temos – emoções, climas, suspeitas –, incluindo descobertas que só conseguimos fazer se andarmos lentamente”.
“E é assim que devagar, nós procurámos, com a literatura, chegar ao coração das pessoas. Estabelecemos uma espécie de tráfego secreto e subversivo feito à base de emoções e impressões. Só desta maneira é que conseguimos partilhar com os homens a imaginação, a liberdade e uma ambição de conceber mundos alternativos a este cinzentismo em que vivemos”. O livro Rainhas da Noite está disponível nas livrarias de Maputo.