Quando Deodato Siquir nasceu, em 1975, Moçambique acabava de se tornar independente. No ano seguinte, 1976, irrompeu um conflito armado – entre a Renamo e o Governo – que só terminou 16 anos depois, em 1992. No decurso dos primeiros 10 anos de paz, o artista emigra para a Suécia, onde vive há 14 anos. Por causa da guerra, Siquir não conhece o seu país.
Presentemente, o autor do disco Balanço tem filhos adolescentes. Receia que, pelos mesmos motivos, eles não conheçam o seu país. A actuação do músico moçambicano, Deodato Siquir, que reside na Europa há 14 anos, em Maio, em Maputo, foi um evento histórico: Pela primeira vez, depois de se radicar na Suécia o músico cantou com a sua banda, no IV Festival Azgo realizado na sua motherland, o que possibilitou que os seus colegas europeus conhecessem a sua terra. Também se explorou a possibilidade de, em Moçambique, um público alargado absorver o seu concerto e ver o trabalho que tem desenvolvido na Escandinávia.
Embora, anualmente, de vez em quando, Deodato tenha visitado o país – metodicamente para não perder a conexão umbilical que possui com este torrão – vive na Europa. Como tal, é interessante a forma como vê Moçambique, nos últimos anos, em função dos eventos mais importantes que se assinalam: “Temos muito que aprender dos outros povos para que, uma vez implementando tais saberes aqui, possamos desenvolver o país. De todos os modos, estamos a progredir”.
Qualquer insistência da nossa parte em relação a esta pergunta, não terá nada a ver com o facto de ter sido respondida de forma simplista, mas por causa do nosso entendimento de que a Europa é um continente de experiências consolidadas, não só na área da produção musical – em que Deodato actua – como também na de uma sociedade democrática e participativa e, consequentemente, desenvolvida. Como, então, materializar esse proceder entre nós?
“A verdade é que nós temos a faca e o queijo na mesa. Temos de capitalizar os exemplos dos outros na correcção dos nossos erros, gerando uma sociedade em que todos se sintam felizes – o que não é fácil. Temos um país muito novo”. Se tudo depende de nós, como Deodato faz transparecer, quais são os pontos focais sobre os quais se deve pensar e agir? Essa questão é delicada porque, segundo Deodato Siquir, “não gosto de falar de política, mas penso que a situação política é um dos pontos mãe porque o resto que acontece depende do estado político. Se a situação política for promissora significa que a sociedade vai florir, o sentido contrário é válido”.
Experiências culturais
A experiência de Deodato Siquir – e de outros moçambicanos na diáspora – mostra-nos que na Europa há inúmeras possibilidades de intercâmbio entre africanos. Neste sentido, o autor de Mutema, o seu segundo trabalho discográfico, fala-nos da sua identidade cultural moçambicana: “Certas pessoas não gostam de verduras (matapa, nyangana, kakana) mas quando emigram para longe da sua cultura, porque essas pessoas têm uma identidade, naturalmente, começam a valorizar aquilo que, sob o ponto de vista cultural, lhes é intrínseco. A partir daí procuram fortificar os seus factores identitários – eu sou moçambicano, nigeriano – questionando-se sobre a sua tradição. É a partir daí que a pessoa se apercebe de que não pode perder os seus valores”.
“Os emigrantes dão um pouco mais de valor à sua cultura e tradição. O problema é que – porque não vemos o seu valor – em Moçambique poucos valorizam a sua cultura. Por isso, é normal que nos rebelemos contra a nossa gastronomia, por exemplo, excluindo a matapa a favor da carne. No entanto, quando já não temos a matapa na mesa, e o corpo começa a precisar, é que aprendemos a valorizá-la”.
É verdade que a maior incidência se verifica na obra discográfica Balanço – um autêntico workshop sobre a vida do homem – e menos em Mutema, mas a música de Deodato Siquir está muito enriquecida por alguma nostalgia em relação à terra-natal, às africanidades, aos povos, a algum feminismo entendido enquanto amor de filho para mãe. Trata-se de valores presentes num disco como no outro, de tal sorte que com uma análise menos minuciosa – além do facto de o primeiro ter sido produzido num intervalo de seis anos, enquanto o segundo só teve dois – poucos elementos de diferenciação serão encontrados.
Deodato afirma que a primeira diferença existente entre as obras, que até interfere na qualidade do produto final, é, de facto, o tempo absorvido na produção de cada disco: “O Mutema é um disco que foi feito numa situação de emergência. Na altura eu estava a trabalhar para a produção do segundo disco, no entanto, a minha mãe estava doente – o que concorreu para que eu ficasse numa situação de ups and down: sempre vinha a Moçambique a fim de participar na sua assistência, até que, de repente ela se foi, antes da conclusão do trabalho discográfico”.
Em resultado da ocorrência, diz o pai de Mutema, “fiquei muito sentido e a única coisa que me podia consolar era a produção de uma obra em sua homenagem. Daí que, em dois anos, produzi o disco Mutema. Ou seja, esses álbuns permitem-nos ver a diferença – em termos de qualidade – entre o caril de amendoim e o de sardinha”.
A aventura
Transcorridos 14 anos depois de Deodato confrontar a mãe com a ideia de ‘abandonar’ Moçambique, enfrentar o frio no Ocidente, naquele continente europeu onde vivem os homens de outra cultura – totalmente diferente da sua – se questionado sobre o assunto, que comentário faria?
Como afirma o artista, tudo começou com uma oportunidade: “Quando tudo ocorreu, eu não olhei para mim. Pensei no meu povo. Decidi descolocar-me para aprender novas habilidades, prometendo trazê-las a casa para benefício de todos. De terceiros. É como se diz em inglês its very deep. Não sou eu. Apenas sou o mensageiro. Cabe-me a missão de transportar os hábitos daqui para lá e de lá para cá, misturando as culturas. Eu sou o elo entre a cultura africana, moçambicana e a cultura europeia da Escandinávia”. Deodato Siquir expõe a necessidade de experimentar o novo no topo das motivações, naquela época.
“Já havia atingido um nível em que, no país em que me encontrava, não podia prosperar. Em contra-senso, eu precisava de enriquecer o meu trabalho para fortalecer a minha cultura. Tratou-se do cumprimento do meu destino. Sou crente em Deus, que é a entidade que meu deu o talento a fim de mandar a mensagem para o povo moçambicano. Depois de ter estado na Europa, ao longo desses anos acho que, por intermédio do trabalho que tenho desenvolvido, há pessoas que pesquisam no Google sobre Moçambique. Sou o embaixador cultural deste país”.
Daqui para lá
O multilinguismo – o artista canta em xichangana, português e inglês – que caracteriza as suas obras é um aspecto interessante em várias perspectivas. Uma delas é o facto de Deodato levar, através da sua música, uma língua moçambicana muito local, o xichangana, para a Europa e, musicalmente, interagir com as pessoas.
A respeito deste aspecto há uma pergunta pendente: “É a música que enriquece a língua ou é o contrário?” Para já, saibamos o seguinte: “A música tem uma magia que até hoje não consigo descrever. Muitas vezes, a gente não precisa de entender o seu conteúdo – aquilo sobre o qual o artista canta. Não importa se a composição é interpretada em chinês ou em inglês. O essencial é que, inevitavelmente, a música contém algo que nos guia a fim de percebemos o sentido da sua mensagem – se triste ou alegre”.
O argumento seguinte é suficiente para sustentar a tese de Deodato Siquir: “Nos anos 1980, altura em que Michael Jackson cantava Beat it – e isso acontece quase com todas as pessoas –, independentemente de compreendermos ou não o inglês, percebíamos que se tratava de uma música animada e enérgica, reagindo através da dança.
No entanto, quando ele começou a cantar The girl is mine, entendemos, imediatamente, que se está diante de uma música de amor. Por isso, acredito que na Escandinávia quando as pessoas me ouvem a cantar em xichangana ou em português, de uma ou de outra forma, são envolvidas pela atmosfera musical”.
Situação apavorante
Iguais a quaisquer notícias ruins, as mensagens sobre a instabilidade política de Moçambique voam. Como é que o africano que está na Europa – por exemplo, o músico Deodato Siquir – acolhe tais informes? Deodato diz-nos que “sempre que a instabilidade política de Moçambique chega aos meus ouvidos cria-me pânico” e argumenta:
“Sou o produto de um Moçambique independente, porque nasci em 1975. Mas ao longo da década de 1980, decorreu no país a guerra civil. Portanto, não pude conhecer o meu país durante os 16 anos do conflito. Restaurada a paz, em 1992, nos anos seguintes, emigrei para a Europa. Por essa razão, não conheço o meu país”.
No entanto, além disso, a narrativa sobre as ameaças de um conflito militar – em Moçambique – possui outros contornos mais preocupantes: “Já tenho filhos adolescentes, por isso, quando a instabilidade volta, fico em pânico porque significa que eles também não poderão conhecer o país por causa dessa situação. A guerra é cíclica gerando uma história repetitiva que me deixa constrangido. Espero que eles resolvam o problema que criaram”.