Em África como nos outros continentes, a dança alia-se à vida dos homens, acompanhando-os em todos os momentos, com enfoque para os da alegria, da colheita e do nascimento. Em certas culturas, as pessoas dançam na tristeza celebrando a morte, por exemplo. Porém, alguns desses bailados são marcados por mistérios, pura e simplesmente, que garantem a sua preservação. O Nyau, um bailado típico da província de Tete e de algumas regiões da Zâmbia e do Malawi, não é excepção. Para além de na sua execução esconder o rosto dos praticantes, esse “baile de máscaras”, ainda é um ‘feitiço’ para o povo moçambicano.
No passado, estamos a falar sobre o contexto africano, a idolatria aos deuses, os nossos antepassados, fez com que os homens que acredita(va)m na existência desses seres procurassem formas para garantirem que as gerações os adorassem por tempo indeterminado. Na verdade, a demonstração do respeito por essas criaturas invisíveis, diga-se, inclui o sacrifício de animais, uma festa em seu nome, sem excluir algumas danças locais.
Neste artigo, o @Verdade pretende falar de uma dança praticada em Moçambique, assim como em alguns países vizinhos: o Nyau. São vários os comentários feitos acerca desse baile. Alguns associam o seu surgimento à formação do Estado Undi, por volta do século XVII, altura em que se supõe ter sido adoptado como uma forma de manifestação do seu poderio sobre os povos conquistados.
No entanto, Damião Gerente Coelho, nascido na província de Tete, além de conviver com fortes recordações do Nyau, afirma que essa dança é originária das regiões de Angónia, Chiúta, Marávia e Zumbo, de onde, mais tarde, se foi alastrando para outras regiões com o mesmo ideal: honrar os seus deuses. Ainda que seja partilhado por alguns países vizinhos, designadamente Zâmbia e Malawi, o Nyau possui fortes referências históricas em Moçambique. No entanto, nas referidas nações, a também conhecida como “dança dos mistérios” é marcada por hábitos e práticas diferentes. Uma das suas características é ser, essencialmente, masculina.
É a esse respeito que Coelho argumenta: “As mulheres e as crianças não podem ver a manifestação dessa dança, pois precisa de ser segredado à classe feminina como também aos petizes considerados seres ingénuos. Receia-se, por isso, que eles denunciem as práticas dos bailarinos. Além dos mais, as crianças que participam nos ensaios do Nyau são, convencionalmente, vetados ao direito de frequentar o ensino secular. Ficam baralhados, pois no ‘santuário’ dos ensaios realizam-se práticas que desnorteiam a mente da criançada”.
Nesse bailado os passos são marcados pelo ritmo acelerado e agressivo ao som ‘perturbante’ dos tambores. O seu dançarino, depois de se equipar com uma indumentária própria – máscaras, luvas que enroupam as palmas das mãos – torna-se Gule Wankulo, uma espécie de autoridade do Nyau. Tal substantivo significa “a grande dança”.
É imperioso que os bailarinos cubram o rosto com penas de galinhas ou peles de outros animais. Alguns dançarinos vestem tecidos feitos com pedaços de trapos e sacos, fibras de árvores, penas de águias ou avestruzes, formando uma mistura de cores. Outros exibem-se mascarados, com o corpo nu, pintados de cinza e argila vermelha ou branca.
Nas pernas usam chocalhos, também ostentando várias cores, que contribuem para a bela sonoridade que caracteriza a dança. Porém, para além das suas vestes, os dançarinos de Nyau quando se deslocam ao palco fazem de tudo para que ninguém os veja, isto é, para que não sejam reconhecidos e levantam sempre poeira num ritmo bastante acelerado.
“No mato ou no cemitério fuma-se tudo...”
O consumo excessivo de estupefaciente, segundo Coelho, é uma prática comum e normal na preparação da dança Nyau: “Eles fumam qualquer coisa, até mesmo drogas. Ninguém vai revelar o segredo, porque é boca dentro e não boca fora”.
No entanto, para além da soruma, considerada por Coelho um pão de cada dia dos Gule Wankulo, antes de entrarem em acção são vistos por curandeiros a fim de lhes prestar a devida atenção.
Coelho assegura-nos que os praticantes dessa dança estão totalmente ligados a actos de curandeirismos pois, muitos deles, senão todos, depois da experiência da dança, são assimilados pela equipa de curandeiros ou instrutores com vista a passarem o testemunho.
A difícil missão de um Gule Wankulo
“Embora tudo tenha rituais de iniciação quase idênticos, mais vale ser polícia do que um Gule Wankulo”, começa por dizer Damião Coelho, comentando acerca da missão que abraçam os praticantes de Nyau. Depois de a pessoa se disponibilizar a tornar-se um Gule Wankulo, os curandeiros instruem-no a fim de enfrentar todas as dificuldades existentes como, por exemplo, saber guardar segredo. Para além disso, também se faz o exame de coragem.
“Quando a pessoa quer ser um Gule Wankulo, primeiro, é levada ao mato onde responde à seguinte questão: ‘Se por acaso aparecer um leão ou uma cobra podes ter a coragem de o enfrentar?’”
Dependendo da resposta dada, usando-se a magia negra, faz-se aparecer um monstro cuja boca possui um embrulho com o formato de um coração. Instrui-se o candidato a bailarino a tirar o órgão da boca da ‘besta’ sem temer. Nesse contexto pode ocorrer uma grande luta porque, obviamente, o bicho não aceita, pacificamente, que o homem o segure. Por isso, nem todos conseguem cumprir esta missão – o que concorre para que enlouqueçam. Trata-se de uma experiência muito perigosa.
O mistério
O Nyau é mais conhecido pelo secretismo que marca a sua divulgação. Ao longo dos anos, esta dança não conquistou praticantes de outras regiões diferentes de Tete, Zâmbia e Malawi. Segundo Coelho, esse facto deve-se ao mistério que a envolve.
“Há muitos anos, por regra, o Nyau era praticado no cemitério ou nos desertos, menos, e quase nunca, na cidade. No entanto, mesmo no seio familiar dos seus dançarinos, nenhum membro devia saber que determinado parente era membro de um agrupamento daquele movimento cultural. A dança dos mistérios é temida. Bastava suspeitar-se de que alguém – da mesma comunidade – é seu praticante para se ser desrespeitado e considerado feiticeiro”.
Questionado sobre a razão da escolha do cemitério para se exibir o Nyau, Coelho explica que se trata de uma ilusão: “Eles dançavam no cemitério por fantasia. Bailavam para agradar aos seus antepassados”.
Actualmente essa dança é apresentada em qualquer sítio e em qualquer ocasião, mas ainda se ensaia no cemitério em três períodos de tempo: ao pôr-do-sol, de madrugada e ao nascer-do-sol: “Eles podem actuar em qualquer lugar. Há vezes que nos ensaios se sacrificam animais como carneiro macho. Nunca o contrário. Deve ser um macho novinho que ainda não experimentou o cio, muito menos a reprodução”.
Um outro aspecto, ainda segundo Coelho, é que “as canções de Nyau são as mesmas cantadas pelos feiticeiros. Não são agradáveis. Cantam- -se assuntos da bruxaria. Invocam-se os deuses com dizeres, por vezes, inaudíveis e imperfectíveis”.
Reinaldo Luís