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As feiras de Guiúa são mais do que comprar e vender

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Na verdade, as feiras agro-pecuárias que se realizam em Guiúa, nos arredores da cidade de Inhambane, todas as terças e sextas-feiras, vão para além de um simples mercado de compra e venda de produtos diversos, incluindo alimentos e vestuário. Enfeirar é um acto que extravasa e torna o lugar onde acontece num ponto de encontro para o qual as pessoas se dirigem, também, para compartilhar pequenas e grandes emoções da vida. E, nessa perspectiva, a impressão que fica é a de que o negócio é apenas um pretexto. Quer dizer, nos dias indicados, a cidade vai desaguar temporariamente em Guiúa. Homens e mulheres metem-se nos “chapas”, ou em carros próprios, ou ainda a pé, numa azáfama que vai passar pela escolha dos produtos, para depois se discutirem os preços que acabam por ser aceites pelas partes envolvidas. Mas todo este enredo implica necessariamente o diálogo, que vai juntar pessoas de diferentes origens, e isso, afinal, é que torna aquele lugar um palco vital.

Aliás, o mais bonito ainda é ver gente que vai a Guiúa apenas para dar uma volta. E mesmo assim que as pessoas acabam sempre por comprar alguma coisa. O lugar em alusão fica a cerca de 10 quilómetros da urbe e tornou-se num paradigma das revendedoras, que, mesmo assim, depois de efectuarem as compras, podem voltar à proveniência e notar que ao fim do dia as contas de retorno não são animadoras. Porém, não desistem. Se tiverem ido numa terça-feira, voltarão na próxima sexta-feira e, se as compras, em quantidades que vão obedecer às tendências do mercado, tiverem sido efectuadas numa sexta-feira, na terça da semana seguinte voltam de novo. Animadas. Para mostrar a toda a gente e si próprias que as adversidades da vida não as fazem vacilar.

É um ciclo que dá sentido à existência das pessoas, que sabem se rir das suas desgraças, dando razão ao intelectual português, Coimbra Martins, que diz que “a vida seria uma eterna comédia se a morte não lhe emprestasse seriedade”. Até porque o lugar onde decorre a feira não é de grandes dimensões físicas, mas fica engrandecido pelo seu valor cultural, porque comprar para revender, com certeza, é um acto de cultura. E onde a cultura fervilha, as pessoas não querem perder a oportunidade de estar naquele lugar. Mesmo que seja para ocuparem o lugar da plateia, e assistirem aos outros a moverem a roda, que nunca pára de girar.

A feira de Guiúa não tem uma vocação específica, ou melhor, tem o talento de se multiplicar e tornar-se plural. Porque se assim não fosse não encontraríamos no mesmo lugar a oferta de hortícolas, roupa usada, carne de porco, loiça diversa, tubérculos como mandioca e batata-doce, legumes, marisco e raízes trazidas por ervanários que “curam tudo”, incluindo a impotência sexual. É um campo de exaltação à vida, sem dúvidas, exposto em ponto menor num lugar que não parece nada.

Guiúa muda a rotina dos “chapeiros”, os quais nos dias da feira se marimbam para os passageiros que precisam de transporte a fim de se deslocarem a outros destinos que não têm nada a ver com as compras. A prioridade são as mulheres que levam mercadoria. Nesse dia os transportadores podem sair da cidade com os carros vazios porque sabem que quando voltarem, essa opacidade terá sido compensada, a dobrar.

Não importa que as mulheres se sentem nos bancos com os sacos, molhados ou húmidos. Nesse vaivém frenético, que se justifica pela luta diária ao encontro do pão, as pessoas e as mercadorias são empilhadas no mesmo espaço, sem dignidade. Cada vez que alguém entra, depois de ultrapassada a lotação, parece que a viatura se dilata. O condutor e o cobrador não se cansam de meter mais gente numa viatura que pode criar desgraça num dia desses, pela forma como é usada. Mas não importa, para a frente é que é o caminho.

Aida Bambo é uma mulher de físico avantajado, a tender para o obeso, mas ela recusa que a depreciem, e diz: “Eu sou fofa”. Já fez as compras e está sentada no banco da frente. Sobre as coxas tem um enorme cesto a transbordar de produtos. No meio, ainda no banco da frente, entre ela e o condutor, outra mulher tem dificuldades de se acomodar. Ela também tem por sobre as pernas um sexto cheio, que descai sobre o pára-brisas. Está ensanduichada, mas não pode fazer nada. Tem de viajar, de regresso à procedência, mais concretamente para o mercado onde vai revender o que adquiriu.

Aida está neste negócio há cerca três anos, e cada vez que vai a Guiúa, sente-se animada a ir lá outra vez. “Meu filho, é preferível sofrer aqui do que sofrer em casa, com os braços cruzados. Este negócio ajuda-me a manter o sonho de que amanhã as coisas vão melhorar. Somos muitas que fazemos este trabalho e isso diminui a possibilidade de ter muitos clientes, mas a vida é assim mesmo. Isto não dá nada. Pode ser que estes produtos todos que comprei aqui não tenham saída e apodreçam, contudo eu não vou parar”.

Enquanto Aida fala com o repórter, o cobrador intensifica o apelo aos passageiros, cuja prioridade é dada aos que têm maior bagagem. Está cheio de gente em Guiúa. Enquanto aqueles que estão aviados partem de volta, outros chegam para se abastecer. Outros ainda, vindos de Jangamo ou Mutamba, descem dos “chapas” com sacos na cabeça, e, antes de se aliviarem do peso, está já alguém à ilharga, um potencial comprador. Estão todos animados, o comprador e o vendedor, movidos pela ansiedade de fazer algum dinheiro.

É um espectáculo que pode começar às 5.00 horas da manhã, prolongando-se até ao fenecer da tarde, e os preços vão se transformando, à medida que o tempo corre. Não se pode voltar para casa de mãos vazias. A vida é dura, sobretudo para aqueles que amanham a terra, e não podem ser eles a marcar o preço. E se o determinarem, não há certeza de que vai ser aceite. É uma questão de oportunidade de negócio. E de sobrevivência.

Mercado “dzudza”

Em Guiúa também desembocam revendedores de roupa usada, que encontram na feira uma janela para através dela vender. E tudo leva a crer que eles conseguem. É verdade! “As peças aqui são relativamente mais baratas”. Quem assim o afirma é Otília Sumbe, uma mulher que tem frequentado a feira, sempre na esperança de encontrar uma boa proposta.

“Acho que esta é uma iniciativa louvável. As pessoas vêm para aqui vindas da cidade, com o objectivo único de comprar, e compram diversos produtos, incluindo roupa em segunda mão, que por vezes nos dá ofertas espantosas, em termos de qualidade. Mas para mim, mais do que a roupa do dito mercado ?dzudza?, é a diversidade que Guiúa nos dá. Este mercado empresta-nos ainda a possibilidade de sairmos da cidade e experimentarmos outras sensações. Gosto de vir para aqui”.

Joana Guibunda é revendedora de roupa. Nos primeiros dias fazia-o de forma itinerante, mas agora acabou por ficar viciado no negócio. “Sim, no princípio só vinha nos dias da feira, entretanto, a partir de um determinado momento, comecei a sentir que podia fazer o meu trabalho aqui de forma fixa. Como sabe, as feiras realizam-se nas terças e sextas-feiras, mas nos outros dias o mercado não fecha, as pessoas continuam a vir”. Mas não tem sido fácil para Joana, e ela diz que é assim mesmo, “a vida está difícil em todo o lado, o importante é não parar”.

Ervanários animados

Estão lá em regime permanente, não esperam pela feira. São muito procurados pelos curandeiros e por outras pessoas interessadas no poder curativo das raízes. “Aqui vendemos tudo, desde medicamentos para dores de cabeça, até casos mais complicados como diabetes e impotência sexual, e mesmo combinações que funcionam como anti-retrovirais para doentes de VIH”.

Os tabus ainda existem, numa cidade absolutamente complexada, onde as pessoas escondem os seus actos, fechando-se em concha. Mas há aqueles que já saltaram essa fasquia da hipocrisia, e fazem as coisas à vontade, segundo as suas consciências. Por exemplo, Madalena Guipenete, uma jovem de trinta anos, não tem medo de falar do que faz, e não olha para os lados na banca onde parece procurar alguma coisa.

“Eu não sei por que é que as pessoas têm vergonha da sua realidade. Para mim, esses que julgam que comprar raízes é retrógrado estão completamente equivocados. Eu estou à procura de algo para afugentar maus espíritos, e não vejo nenhum problema em falar disso. Há muita coisa boa para a saúde que se vende aqui. Alguns problemas podem ser resolvidos neste mercado sem precisarmos de recorrer às farmácias da cidade”.

Pois é: para aqueles que conhecem estas coisas não podem passar sem olhar com alguma curiosidade para esta exposição que a feira oferece. “A vida da humanidade passa por aqui”, disse um professor que não quis ser identificado, não sabemos porquê. “Muitos medicamentos que são vendidos aqui são fármacos de uma eficácia inquestionável, e são bem melhores que muitos comprimidos químicos que os médicos nos receitam. Infelizmente estes ervanários não são valorizados. Acho que alguma coisa devia ser feita para dar lugar a esta gente que conhece as plantas e os procedimentos de cura. Quer dizer, passamos por um lago de vida e ainda dizemos que isto não é nada. É muita pena”.

Marisco fresco

Nos dias da feira, Guiúa pode tornar-se um paraíso de marisco, com peixe e camarão e lula, tudo fresco. E ali perto estende-se o mar que vai terminar numa zona chamada Khobane, famosa pelo camarão gigante que vezes sem conta inunda o mercado. Durante a noite, os pescadores descem com as suas redes, e outros não precisam de recorrer a esses meios de captura de mariscos ou cardumes porque têm as armadilhas estendidas na praia, e de manhã lá estão eles, animados com a faina e com o dinheiro que vão ganhar dos compradores insaciáveis.

Mwandro é um homem alto. Às seis da manhã já está com o seu produto à disposição. Fica agasalhado para impedir que o frio lhe penetre. Veste um casaco confortável que comprou no “mercado dzudza”, e um gorro que lhe protege a cabeça. Fuma incessantemente e, de quando em quando, vemo-lo a tirar do bolso uma garrafinha de qualquer coisa que entorna goela abaixo. É um tagarela. Conversa com os seus companheiros e seduz os compradores. Parece um personagem desinteressado, que está ali em obediência à rotação da vida. Faz parte da multidão que está em Guiúa para dar ambiente à feira. É um pescador que agora exerce a função de comerciante. Vende o peixe que ele próprio pescou, ou apanhou na armadilha. Isso é que dá sentido à sua pessoa. Faz aquele movimento sempre que o tempo lhe for generoso. Por vezes não, o tempo vira-se contra ele. Mas quando é assim ele supera-se. Tem esperança. Acredita piamente no futuro. Na sua casa, provavelmente, não terá provimento para os dias de estiagem. Cada dia para ele é um dia novo. Amanhã virá outro. Com peixe ou sem peixe. Não interessa. O importante é que ele vai acordar e enfrentar a tempestade.

Uma bebida não faz mal

A feira de Guiúa não servirá apenas para vender produtos alimentares e roupa usada e raízes medicinais e marisco e quejandos. Há barracas no local, abertas para vender bebida. Bebe-se a potes, desde o amanhecer, entrando depois noite adentro, sem que os consumidores se preocupem com as sequelas que vão ficar. O que o anima é beber na feira, festejar juntamente com aqueles que vão com outros propósitos mais saudáveis. E nós não temos a menor dúvida de que arrancar com a jornada do álcool logo pela manhã não ajuda muito.

Mas quem bebe não são apenas os ociosos. Os pescadores e biscateiros também fazem parte desses rituais. São homens honestos, que vivem do seu trabalho, duro e pouco rentável. Mas dá para o copo que vai espantar a dor de ser pobre. Eles estão ali, em Guiúa, a beber e a petiscar peixe ou lula ou camarão, tudo fresco, fazendo inveja aos paladares mais requintados. E tudo isto constitui o retracto de um lugar tão pequeno fisicamente, mas engrandecido pela sua capacidade de juntar pessoas. Em paz e em liberdade.


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