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Ah... Eu sou assim!

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O título deste artigo não deve ser nada sugestivo para a leitora, pois é uma expressão tão comum que raramente nos causa alguma curiosidade ou interesse em analisá-la. No entanto, num dia destes, pus-me a pensar porque é que as pessoas em geral, e as mulheres em particular, usam esta expressão. Apercebi-me, então, de que na maioria das vezes as pessoas usam a expressão “Ah...eu sou assim” para, por um lado, se defenderem de uma crítica/observação feita ao seu comportamento, carácter ou forma de vestir, pentear, etc. Em alguns poucos casos também é usada como forma de reconhecimento de um elogio que lhes é feito, em relação ao seu carácter ou maneira de agir para consigo própria ou com os outros.

Reflecti, principalmente, sobre os casos em que a maioria usa esta expressão, como uma forma de defesa quando sente que a sua maneira de ser e estar está a ser questionada por outrem ou por um conjunto. Mas então, com a afirmação “eu sou assim”, a que é que a pessoa quererá referir-se? Referir-se à sua identidade? Quais serão as implicações de tão categórica expressão? Penso eu que com tal expressão, mesmo que usada por todos nós de forma às vezes inconsciente, deixa pouco espaço para contestação do lado do comentador.

Quem diz “eu sou assim” termina ai mesmo a conversa e pronto! Por isso atrevo-me aqui a fazer esta contestação em “voz off”, particularmente dirigida a nós mulheres. Seremos nós, na nossa mais profunda essência, aquilo que tão vigorosamente defendemos? Ou apenas o resultado da nossa formação de identidade?

Eu hoje aceito que a minha identidade é realmente, como me tentou convencer o meu professor de sociologia, o resultado das influências de todos os espaços a que a minha pessoa esteve exposta: a família, as escolas todas por onde passei, os clubes e associações, as religiões de que fui membro.

A sociologia refere-se a isto como o processo de socialização, onde os valores, as pessoas, os comportamentos, as instituições têm a capacidade de influenciar a formação da nossa identidade. Na maioria desses espaços não tive escolha, mas em muitos outros eu escolhi participar e aceitar os valores a eles associados. Mas a isto voltarei a referir-me ao longo do artigo.

Entretanto, antes mesmo de ser uma entidade possuidora de uma identidade social, eu sou um ser humano. De acordo com a biologia sou um ser vivo, uma fêmea mamífera com a capacidade nata de conceber, albergar e parir outros seres iguais a mim. Parece uma análise crua, mas achei que deveria ser a primeira de todas. Nesta minha capacidade de procriação associa-se a responsabilidade adquirida de cuidar das minhas crias.

Este é um acto típico de todas as fêmeas mamíferas, pelo menos até que as crias sejam capazes de caminhar com os seus próprios pés. Como ser humano, também derivam das mulheres comportamentos típicos das fêmeas, incluindo as mudanças hormonais que regulam o ciclo de reprodução. Todas as mudanças hormonais que acontecem, como já é sabido, têm uma grande influência no nosso “...eu sou assim”.

Algumas vezes pensamos que somos de uma forma durante a ovulação, e essa forma muda – às vezes drasticamente – durante o período menstrual. Enquanto o libido – desejo sexual – está em alta durante a ovulação, já a tristeza, a melancolia, a irritabilidade tendem a acompanhar o período pré-menstrual e mesmo durante a menstruação.

Vezes há que estas manifestações vêm acompanhadas de dores em algumas partes do nosso corpo. Estas reacções estão associadas à nossa natureza como humanas. Todavia, os seres humanos são também seres sociais. Nascemos em sociedades compostas por várias instituições, valores culturais (sociais), imposições religiosas e sociais de outros povos etc.

Se eu tivesse nascido nos Estados Unidos teria sido influenciada pela forma como os negros se comportam naquela sociedade. Mais ainda, se fosse descendente dos escravos oriundos de África teria uma maneira de me ver a mim mesma influenciada pela exploração que os meus antepassados teriam vivido. O mesmo se passa sendo eu descendente de africanos em África, que foram também expostos ao colonialismo e à forma como as administrações e burguesias coloniais tratavam os africanos.

Todos os factores a que me referi influenciam a forma como hoje vejo a minha pessoa. Poderia também ter nascido numa sociedade livre de qualquer uma destas coisas, mas com outro tipo de influências, outros hábitos e costumes (evito aqui usar a palavra cultura pois é muito grande para o meu pequeno artigo).

As mulheres negras e mestiças nascidas na América do Sul e Central sofreram – e sofrem ainda hoje – a “crise do cabelo”. Enquanto agora as opções são menos associadas aos complexos raciais, antigamente estas estavam associados à necessidade de inclusão numa sociedade que era mais inclusiva para pessoas de raça branca e/ou com os cabelos corridos.

Acoplada à “crise do cabelo” veio também a crise da cor da pele, e outras tantas crises que bem conhecemos. Dependendo de onde cada mulher estivesse, ela era irresistivelmente influenciada pelas forças sociais e políticas que a rodeavam. Houve mulheres que resistiram a tais crises, que foram totalmente rebeldes ao sistema social e político, o que as levou a serem banidas até nas suas próprias comunidades, como é o exemplo das mulheres que mantinham o cabelo natural. Como podem ver, o “eu sou assim” não é dissociado dos factores naturais e sociais.

As mulheres, em algumas (sub) sociedades moçambicanas, por exemplo, à tarefa natural de cuidar dos infantes associa-se também a tarefa “social” – e nobre – de cuidar dos outros membros da sua família. Digo social, porque se virmos o programa “reino animal” observamos que, depois de crescer, cada animal segue o seu rumo pois rompe- -se a dependência. Entretanto, nas nossas sociedades as ligações vão para além da família nuclear, pois incluem outros núcleos familiares (famílias de irmãos, tios, avós, etc.).

Também é expectativa social que as mulheres se comportem de uma determinada forma, por exemplo a maneira de se sentarem e de se vestirem que são “apropriadas” para as mulheres como, por exemplo, o tipo de bebida que consomem (já ouvi dizer que há na cidade bebida para mulheres e bebida para homens; tal nunca ouvi nas zonas rurais).

Diz-se que todas estas são regras sociais criadas para “tentar” trazer harmonia entre as pessoas, principalmente entre homens e mulheres. A história mostra que na maioria das vezes essa harmonia não foi alcançada como resultado destas regras, e mesmo assim a prática prevalece.

A leitora deve estar a pensar que estou a vaguear bastante e talvez seja melhor iniciar a síntese sobre o que procurei trazer à luz. De uma forma resumida, o que eu fui quando tinha nove anos, o que fui quando tinha vinte e o que sou agora mudou várias vezes por influência da natureza e dos acontecimentos sociais e políticos.

Acredito também que nós, em muitas destas situações, tivemos a capacidade de nos adaptar aos novos contextos ainda que árdua ou facilmente. E aqui volto à questão da “escolha”, a que anteriormente me referi e sugeri. Num mundo em que o capitalismo nos vende tudo, até identidades – todo o tipo de identidades, religiosas e ideológicas – , temos a capacidade de escolher o que queremos ser.

Então, o nosso “...eu sou assim” depende do que estiver no nosso mercado, ao nosso dispor e que nos atrai. Já conheci uma senhora que era muçulmana, mas que entretanto “porque a vida não andava bem e não tinha sorte” andava à procura de salvação nas igrejas cristãs populares, que existem no mercado da religião.

Há também pessoas como eu, que escolheram um tipo de penteado associado a um movimento pan-africanista, mas que não se referem a si mesmas como “rastafarians”. Está tudo a venda, até há produtos para manutenção.

Então, o “Ah...eu sou assim” como forma de defesa por uma crítica que nos é dirigida, digamos, por exemplo, no auge do síndroma pré-menstrual ou por termos dito algo que tenha ofendido uma religião ou uma associação política, não pode ser, creio eu, a nossa essência. Quando nos recusamos, veementemente, a aceitar uma crítica por um comportamento ou uma característica tipicamente social, corremos o risco de a sociedade vir a pedir-nos contas, quando subitamente nos vê a acatarmos tal crítica.

“Já viram a Joana, andou a fazer-se tanto, para no final das contas fazer o que dizíamos” dizem as mulheres em conversa de corredor, no social ou na cozinha preparando uma ceia para a família alargada. Para finalizar diria que este artigo não tem o objectivo de coagir as mulheres a rebelarem-se contra a sociedade, ou a fazer com que as rebeldes acatem o que a sociedade diz (ou as exige).

Apenas sugere que da próxima vez que “Ah...eu sou assim” escapar dos nossos lábios, assumamos completamente as consequências. Acima de tudo, o artigo pretende deixar a seguinte mensagem: não tenhamos medo de sermos o que nos tornamos como resultado da(s) sociedade(s) onde vivemos, mas principalmente não tenhamos medo de assumir a nossa natureza humana e usar a capacidade de mutação, que nos é nata, para nos tornarmos SEMPRE aquilo que desejamos e merecemos ser.


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