Há longos anos, sendo até difícil de descrever com exactidão, em Moçambique, fazer parte de um espectáculo de música de grande calibre e com artistas de renome internacional era uma raridade. Mas, nos dias que correm, por incrível que pareça, poucos são os eventos de música organizados com perfeição. Na verdade, em cada “show”, vivemos momentos de deslizes, no sentido real e metafórico. Na última sexta-feira (12), os irmãos Neco Novella e Isabel Novella partilharam, no palco do Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM), as suas “Vivências e Memórias”, num espectáculo que decorreu, diga-se, sob as inquietações do público. Saiba as razões...
No início de mês de Dezembro ficou a saber-se a partir de, quase, todos os meios de comunicação social, que duas figuras do soul, do pop, do jazz e de outros moçambicanos, os irmãos Novella – Neco e Isabel – iriam subir ao palco para reviverem as suas “Vivências e Memórias” com o público de Maputo e não só. Tratou-se, porém, de um evento que desde o princípio criou expectativas a diversos amantes da música moçambicana.
Mas, contrariamente do que se noticiou durante todo este tempo, em vez de se atender as esperanças da moldura humana que, imbuída pelos dizeres da publicidade, para lá se dirigiu - como tem acontecido sempre que se divulgam eventos de género -, não obstante, alguns dos fás foram interditos de assistir ao concerto. As razões são simples: o espaço reservado para o “show” - com cerca de 140 lugares – ficou lotado e, consequentemente, os bilhetes esgotaram. E argumentam: “o espectáculo era íntimo”.
Embora os eventos acústicos sejam uma prática secular, e talvez, milenar, que ocorrem, quase, sempre em sítios fechados e íntimos, o que se pode dizer sobre o evento dos parceiros Novella é que, até certo ponto, os organizadores desrespeitaram as pessoas. Por isso, para quem conhece as figuras da noite, ou, ao menos, acompanha a sua carreira, muito em particular os seus admiradores que com pompa e circunstância se dirigiram ao CCFM, e sem sucesso, não vê-los a actuar foi uma experiência desastrosa. Marcante.
A verdade é que para além da informação não clara em relação ao tipo de espectáculo que se realizaria (não existe nada sobre isso no cartaz de publicidade), ainda se cometeram outros pecados de carácter técnico. O atraso, sim – esse calcanhar de Aquiles – , também contribuiu, negativamente, para que, logo nas primeiras horas, o momento de “Vivências e Memórias” fosse um fracasso. De referir que o “show” estava marcado para ter o seu início às 20h30 e só aconteceu 30 minutos depois, isto às 21 horas.
Mas, de todos os modos, ao que tudo indica e ao que ao anúncio (enganoso) respeita, estamos diante de uma infracção do Artigo 17 sobre a publicidade (Boletim da República) que reza o seguinte: “Quando se tratar de um espectáculo e divertimento público musical, a publicidade deve especificar se os artistas têm acompanhamento de uma banda, orquestra ou se trata de música em “playback” (e, claro, se é acústico ou não). No entanto, pode-se afirmar que, divido a esses problemas, para alguns – claro, para nós também que abandonámos o concerto – a experiência foi efémera.
Por essa razão, mesmo depois de termos sidos afiançados que, caso o público, diga-se, excluído aderisse em massa, os músicos iriam dar segunda oportunidade. Isto é, seríamos, mais tarde, recompensados com um outro “show” por volta das 22 horas, no mesmo local e com os mesmos artistas. Mas, como se pôde perceber, ninguém gostou da ideia e, consequentemente, ninguém ficou para ver. A verdade é que, talvez, estejamos necessitados de reaprender a organizar os nossos momentos artístico-culturais e reavaliar todos os princípios na relação com a comunidade consumidora e connosco próprios.
O abandono da Imprensa ao concerto
Há quem diga (e como se diz!): “Os jornalistas são muito exigentes”. E, pior do que isso, “gingam”. Embora não seja este o foco da nossa abordagem, importa referir que a prova a que os repórteres culturais de diversos órgãos de comunicação social foram sujeitos na sexta-feira é de se repudiar. Afinal, mesmo sob a condição de pedinte, ninguém merece ser marginalizado.
Na verdade, se não tivéssemos um pouco de consciência de que é necessário que se respeite as pessoas, independentemente da sua condição e, no caso dos jornalistas, se pagam a entrada ou não, talvez, nunca nos preocuparíamos com os (nossos) direitos. E, se calhar, não teríamos abandonado o espectáculo. De todas as maneiras, quando chegámos ao CCFM, pontualmente às 20h30, dirigimo- nos à sala escolhida para acolher o concerto, a fim de reportar o momento do princípio ao fim, como manda a regra.
Mas, por inexplicável que se pareça, fomos logo abordados pelo assessor de imprensa da dupla, que nos pediu que ficássemos por alguns instantes no recinto enquanto confirmava a nossa entrada. No entanto, enquanto esperávamos, diga-se de passagem, pela bendita autorização para ocuparmos a sala que aos poucos enchia, do outro lado os artistas já se encontravam no palco a cantar. As actuações começaram, mas nós ainda não tínhamos o direito de entrar. Grosso modo, estávamos a ser burlados.
Para quem, talvez, teve uma dia de maior agitação e não concorda com a ideia de passar muito tempo parado ou sob a condição de pedinte, como é o caso dos jornalistas que abandonaram o local do espectáculo, tendo, por isso, algumas dificuldades em perceber as óbvias razões em relação à atitude dos organizadores, a experiência de, obrigatoriamente, ter de assistir ao concerto de pé, por falta de espaço somente para os repórteres, é impar e recusável, porque, talvez por razões de ética e de preferência de cada um, não é justo.
Por esta razão contactámos o assessor de imprensa do evento, Leonel Matusse, com vista a esclarecer-nos sobre os problemas acontecidos na noite de sexta-feira. Sarcástico, Matusse, que também faz parte da classe dos jornalistas culturais do país, revelou que a equipa de produção do “show” dos Novella não contava com a presença dos repórteres. Isto é, não se precisava de ninguém para cobrir o espectáculo. Até agora, são, por nós, desconhecidas as razões, mas acredita-se que, embora existam, o problema tem a ver com a própria organização.
Contudo, ainda neste rol de acontecimentos, por causa das nossas inquietações e da falta de concordância em relação às condições a que fomos sujeitos (de ter de assistir ao espectáculo de pé) tivemos de abandonar o espaço do CCFM, depois de terem sido apresentados os primeiros temas. Eram já cerca das 22 horas. Intencionalmente abandonámos o “show”, mas as questões ainda persistem: se bem que não precisavam dos “escribas”, por que motivo fizeram as acreditações? Por que razões se convocou os repórteres para a conferência de imprensa, que houve um dia antes do evento, com os artistas? E o que, depois, teria falhado?