Sem o hábito reiterado de assistir a filmes – por parte dos moçambicanos –, agravado pelo facto de todas as salas de cinema terem sido “vendidas” às igrejas, sem políticas específicas para o sector, neste momento, Moçambique é o país com menos condições para o desenvolvimento da sétima arte. Quem assim pensa é o realizador moçambicano Licínio Azevedo. Na conversa, o autor de Virgem Margarida esclarece outros aspectos sobre a criação. Acompanhe...
Há várias formas de falar de uma realidade. Em jeito de recordação, pode reportar-nos sobre o tempo em que o seu sonho de ser realizador ganha alicerces?
Na verdade, eu nunca sonhei em ser realizador. Sempre quis ser jornalista. Por isso fiz um curso superior nesta área. Durante muitos anos, antes de vir a Moçambique, fui repórter no Brasil. Em Porto Alegre e São Paulo, trabalhei em jornais que faziam oposição à ditadura militar na época. Como jornalista, segui uma carreira agradável que me possibilitou percorrer toda a América Latina, a reportar as greves dos mineiros.
Acompanhei os golpes de Estado perpetrados por militares, na época da ditadura de Hugo Banzer, na Bolívia. Depois da independência local, fui professor de jornalismo em Guiné Bissau. Na altura era proibido nos países da América Latina publicar-se notícias sobre as independências africanas. No entanto, nós, como jornalistas, acompanhávamos a libertação das colónias portuguesas.
Como já conhecia toda a América Latina, entendi que devia conhecer os irmãos de África. A minha ideia inicial era cobrir a guerra em Angola, o que não consegui. Acabei por ir à Guiné Bissau, onde trabalhei como repórter e formei jornalistas. Acompanhei a primeira viagem de Luís Cabral pelo país depois da independência. Foi um trajecto lindíssimo, feito em todos os recantos do país. Fruto dessa experiência, escrevi O Diário da Libertação – um livro baseado em histórias de libertação e factos de guerra – publicado no Brasil.
Em 1977, o Ruy Guerra (um cineasta moçambicano que vivia no Brasil, na altura) veio a Moçambique, a fim de apoiar na criação do Instituto Nacional de Cinema. Ele convidou-me para que viesse trabalhar consigo. Assim que cheguei, fui ao Planalto de Moeda recolher depoimentos sobre a guerra de libertação nacional recém- -terminada. Do trabalho resultou a publicação do livro Relatos do Povo Armado – uma obra cuja tiragem alcançou mais de 30 mil exemplares – em que se baseou o filme O Tempo dos Leopardos.
Conheci Sol de Carvalho e Camilo de Sousa que, em 1978, era o responsável pelo trabalho ideológico da Frelimo, em Cabo Delgado. Ao mesmo tempo, sempre andei entre o jornalismo, a objectiva e a literatura. No Instituto Nacional de Cinema escrevi os primeiros guiões e textos para documentários paralelos às publicações Kuxa Kanema.
Mais tarde, como já tinha experiência cinematográfica, trabalhei no Instituto de Comunicação Social (ICS) no programa Canal Zero. Capacitei os colaboradores da Televisão de Moçambique. A minha transição do jornalismo para a literatura e para o cinema foi um processo natural, suave e sem traumas. Comecei a fazer cinema ao longo da década de 1980 no ICS. Fiz o primeiro vídeo da música moçambicana, melancólico, interpretado por José Mucavel. Depois passei a fazer filmes experimentais e maiores.
Quais foram as dificuldades nessa época?
Não havia dificuldades porque o INC era o primeiro e o grande instituto do país. O cinema era algo essencial para o país, um factor de unidade nacional. Era um elemento de formação e educação, até porque não havia televisão na época. A diferença é que só se fazia um determinado tipo de filmes – algo dirigido.
Como é que o cinema e a fotografia eram encarados pelo povo?
Não acho que a fotografia tenha tido uma divulgação muito grande, mas o cinema tem muito poder na medida em que envolve as pessoas. Sempre houve uma relação entre o público e os filmes. Há tempos, os filmes chegavam a todo o país – o que já não acontece. Acho que só em Maputo havia 15 salas. Além disso havia o cinema móvel que circulava em todo o país. Era a primeira vez que as pessoas tinham a possibilidade de ver a sua própria imagem reflectida na tela. Por isso, os filmes tinham um grande acolhimento popular.
Agora, se calhar, com melhores condições, como é que se pode explorar esta experiência para alavancar a sétima arte no país?
Depois da degradação de infra-estruturas durante a guerra, agora, com todas as poucas salas disponíveis passadas para as igrejas, a situação actual é critica. Eu acho que nós nunca mais teremos mais salas do que temos. Podemos ter mais duas ou três pequenas salas na cidade de Maputo, mas no resto do país o cinema saiu para nunca mais voltar. Ninguém fará um investimento grande na construção de salas de cinema, numa situação em que o público já não tem o hábito de ver filmes.
Vamos fazer uma experiência no Cinema 700, na cidade da Matola, exibindo a Virgem Margarida, mas acho que as pessoas já não têm o hábito de ir ao cinema. Sinto que o que está em voga, agora, como meio de difusão, já não são as salas de cinema, mas sim a televisão. Ou seja, ao contrário do resto do mundo, o meio de difusão de cinema em Moçambique não são as salas de cinema. Por exemplo, só o Brasil deve ter sete ou mil salas de cinema.
O filme Virgem Margarida já vendeu os direitos de distribuição na Suíça e na Áustria. Ele vai passar em várias salas do mundo. Agora, aqui, não há nada. Eu acho que abrir mais salas de cinema – que é algo muito oneroso – seria fazer um investimento sem retorno.
Ao lançar, em 2007, o filme “Hóspedes da Noite” estava a enviar uma série de mensagens. Como é que elas foram recebidas?
As condições daquele lugar, que se encontra num meio urbano, são más. Falta água e um sistema de saneamento. É difícil tirar as pessoas do Grande Hotel, porque quando se tira uma, logo a seguir, vêm dez da aldeia querendo reocupar o espaço. Na verdade, trata- se de um lugar normal. Até certo grau, organizado, com tribunal comunitário, uma mesquita, uma igreja evangélica, um espaço de alfabetização. O que sucede é que há muito preconceito manifestado pelas pessoas que o vêem de fora.
Em Virgem Margarida, no final, as mulheres – sob a orientação da camarada Maria João – decidem ser livres. Mas, ao que tudo indica, o prevaricador, o camarada comandante Felisberto fica impune – o que deixa a impressão de que o filme está em aberto. Porque estruturou a história dessa maneira?
Sim, o fim do filme é aberto porque a verdadeira Virgem Margarida (na qual me inspirei para produzi-lo) morreu por outros motivos. Fiz uma ficção inspirada em entrevistas com prostitutas, realizadas com o objectivo de criar o ambiente. As personagens foram criadas com muita liberdade. Por isso, as pessoas não sabem se a Margarida se suicida ou não. Isso não se mostra.
Em parte, o filme simboliza a auto- libertação da mulher. Além do mais, não foi dito que o comandante está em liberdade porque, se eu fosse ele, vendo aquelas 700 mulheres na vila, fugia como um cão e nunca mais apareceria. Ou seja, se eu fosse um espectador, como diz a comandante Maria João, pensaria que ele passou para o lado do inimigo. Transformou-se num inimigo.
Mas é isso que me intriga. Deixar o filme sem uma conclusão clara.
Foi uma opção. Gosto de deixar a situação um pouco no ar para criar a possibilidade de o espectador terminá-lo como quiser.
Como é que o cinema africano, no âmbito da produção cultural, contribui para explicar e contextualizar (de si para si) o africano?
Isso é algo que começa no início da história do cinema moçambicano. Afinal, o objectivo central era documentar o moçambicano, reforçar a unidade nacional e mostrar ao povo quem eram os moçambicanos. Por isso, o moçambicano é uma pessoa que se reconhece no filme.
Porque é que duvida de que a Virgem Margarida possa ter, agora, um alto grau de difusão no país como aconteceu com O Tempo dos Leopardos?
Na época, O Tempo dos Leopardos foi o primeiro grande filme feito em Moçambique (com todos os meios, incluindo profissionais muito eficientes) e foi amplamente difundido nas salas de cinema que eram abundantes. Mais tarde a televisão promoveu-o. Portanto, penso que é o filme moçambicano mais visto até hoje. Foram utilizados actores muito conhecidos como, por exemplo, Ana Magaia e Salimo Muhamed. E é o único filme sobre a guerra anticolonial – com combates e tiroteios – que existe.
Há motivações ideológicas? Percebe-se que agora, ideologicamente, o filme não se enquadra no regime vigente...
São tempos diferentes e, por isso, as histórias também. Quando fizemos O Tempo dos Leopardos estávamos a promover histórias heróicas da guerra. Fazer um filme leva muito tempo. Por exemplo, mesmo a realização do O Grande Bazar – que é um filme pequeno – custou-me 15 anos, desde que o escrevi até conseguir financiamento para realizá-lo.
Considera que a sua preocupação, agora, é que o filme Virgem Margarida seja visto por mais pessoas. Como é que isso será feito aqui?
O filme já passou em 20 festivais de cinema em igual número de países. Foi exibido na Europa e na América do Norte. Nesta semana será mostrado, pela segunda vez, no Canadá. Neste momento, está convidado a participar em mais 20 festivais de todo o mundo. Portanto, são dezenas de milhares de pessoas que irão ver a Virgem Margarida.
Mas aqui, em Moçambique, ainda temos algumas limitações. Mesmo assim o filme será exibido nas salas de Maputo e Matola. Eu teria um grande prazer se pudéssemos exibi-lo através do Cinema Arena da AMOCINE – que é um cinema móvel – em todas as cidades do país, não em ruas, nas salas. Ou seja, gostaria de levar o filme às salas de cinema antes de passar na televisão.
Fazemos um cinema de resistência
Moçambique é um país com uma herança relativamente grande, sob o ponto de vista de realizadores com carreira internacional. Como é que essa experiência está a ser capitalizada para se imprimir uma nova dinâmica no ramo?
Essa experiência é algo que existe em poucos lugares do mundo. Somos um grupo de cineastas da mesma geração. Começámos juntos no Instituto Nacional de Cinema. Muitas vezes trabalhámos juntos.
O facto de ter feito filmes bastante premiados nos festivais internacionais, num momento terrível como o presente, em que não há dinheiro, confere-me a possibilidade de conseguir algum financiamento. Acho que isso depende dessa experiência toda. Somos poucos realizadores no país. Por isso, em Moçambique nós fazemos um cinema de resistência, porque, contra tudo e todos nós, continuamos a fazer cinema.
Agora está a surgir um novo grupo de realizadores jovens que tiveram uma formação muito rápida. O problema é que, neste momento, esses realizadores não têm possibilidades. Não há financiamento para o cinema. Nesse país corre-se o risco de, no futuro, não se ter cineastas. Nós somos de uma geração extra, mais experiente, mas com uma certa idade. Podemos ter mais dez anos de trabalho pela frente. Mas se não houver uma produção cinematográfica que funcione, se não se aprofundarem as experiências, dominar-se a linguagem da sétima arte, daqui a dez anos vamos ter problemas no ramo.
As pessoas da nossa geração – muitas das quais nascidas nos finais de 1980/90 – ao verem a Virgem Margarida ficaram com uma dúvida: será que os Centros de Reeducação existiram de verdade?
O que não existiu foi a situação que é colocada no filme – a união entre as militares e as prostitutas para se libertarem. As próprias militares eram prisioneiras. A comandante Maria João, por exemplo, ia casar. Entretanto, antes disso, recebeu uma missão que lhe valeu perder o noivo. Ela não podia abandonar a missão. Por isso, os Centros de Reeducação não acabaram dessa forma. Houve uma decisão do Governo nesse sentido.
Está feliz com a recepção do filme no país? Qual tem sido o feedback?
Tudo funcionou como eu previa, da mesma maneira que aconteceu lá fora. No cinema, o mais importante não é a técnica empregue. O que me interessa é que a história seja bem concebida. Quando as pessoas se lembram de um filme que viram há 20/30 anos não falam da fotografia. Recordam-se da história. A história funciona muito bem porque, a partir dela, as pessoas se emocionam. Aqui e noutras partes do mundo eu vi espectadores a chorarem. As histórias são universais, por isso, tocam as pessoas.
Qual é o passo a seguir agora?
É continuar a trabalhar em programas de documentários. Concorrer a financiamentos. Mas está difícil. Quero realizar um documentário sobre os piratas no Índico. Estou há dois anos sem financiamento. Histórias, para produzir filmes, não faltam. Tenho um arquivo enorme. Encontro-as através da leitura de jornais.
Na estreia da Primeira Semana do Cinema Africano de Maputo fez-se a apresentação da Carta de Ouagadougou. Qual é o grau de adesão dos governos africanos em termos de apoio ao cinema?
Não sei. Aqui, em Moçambique, a situação é bem diferente do que acontece noutros países. Na África dos Sul, por exemplo – talvez por ser uma potência económica – há muito apoio ao cinema. Por exemplo, parece que o orçamento da SABC é três ou quatro vezes maior que o da TVM. Em muitos países africanos, sobretudo os francófonos, há políticas efectivas de apoio ao cinema. Aqui já houve, mas agora a situação piorou bastante.
Existe alguma adesão, mas aqui ainda não há reflexo disso. O que nós reivindicamos – através da AMOCINE – é a regulamentação do cinema. Ainda bem que o Instituto de Cinema, que antes era um cadáver, já está reabilitado. Mas ainda não temos políticas para o cinema. E as políticas, nesse sector, significam formação e financiamento para o filme. Nem uma coisa nem outra existe.