Marlene Abdul, de 34 anos de idade, residente no bairro de Malhazine, Rua 08, Célula 05, em Maputo, vive maritalmente com Ivanildo, há 11 anos. Porém, a sua vida tem sido um verdadeiro calvário porque é vítima, constantemente, de violência física e psicológica. A vítima não tem hematomas no rosto, aparenta estar saudável, mas queixa-se de dores fortes em algumas partes do corpo, sobretudo à volta da bacia, quando permanece sentada por algum tempo.
A cidadã é igualmente agredida pela tia do esposo, alegadamente porque nega ser submissa e, por via disso, aceitar exercer quaisquer actividades caseiras que lhe forem incumbidas. Marlene Abdul é apenas um exemplo dentre várias mulheres que sentem na pele, caladas, as consequências da violência doméstica mas não denunciam os casos.
A pessoa a que nos referimos assegurou-nos que, segundo as suas estimativas, dos 11 anos de convivência como o seu marido, 10 foram somente de pancadaria. Entretanto, persiste em continuar no seu lar porque pretende garantir que os seus quatro filhos tenham um pai e uma mãe por perto e não fiquem sem o amparo e afecto dos dois.
Apesar de sentir que o compromisso assumido há 11 anos, de cuidar um do outro em qualquer circunstância da vida, está a ser gorado pelo cônjuge, Marlene ainda declarou que pelos seus descendentes ainda tem forças suficientes para o que der e vier, ou seja, não vai arredar o pé daquela residência. Todavia, os maus- -tratos constituem uma parte dos problemas mais marcantes da sua vida desde que está casada. Em casa não tem nenhum direito, nem de opinar, sobretudo, em situações que envolvam o seu parceiro.
“A família do meu marido tenta fazer com que eu cumpra ordens sem querer ouvir o meu parecer, e quando recuso sou espancada, sofro golpes violentos e hoje sinto dores internas em algumas zonas do corpo.”
A última atrocidade cometida por Ivanildo aconteceu num sábado, 11 de Maio. Marlene, segundo nos revelou, voltou do trabalho, encontrou o marido em casa e perguntou-lhe se já tinha ou não dinheiro para as compras que estavam programadas, uma vez que no dia seguinte o casal iria receber os amigos e alguns familiares com os quais fazem xitique.
O esposo deu uma resposta negativa e saiu à procura do valor em causa. Horas depois telefonou para a mulher, a partir de algures, com o intuito de saber se o problema relacionado com a falta da corrente eléctrica na residência estava ou não resolvido.
A cônjuge disse que a situação prevalecia porque era necessária uma intervenção masculina, uma vez que alguém devia subir no telhado para descobrir o que é que se passava no poste de energia e em casa não havia nada para se cozinhar. Essas informações não agradaram ao marido, o que o deixou enfurecido.
Com os nervos à flor da pele, Ivanildo comprou comida confeccionada numa das barracas do seu bairro e levou para casa, onde comeu na presença da esposa. Esta ficou ofendida, conteve os ânimos e ficou a olhar para o esposo na altura em que este se alimentava.
Para espairecer, Marlene dirigiu-se a um estabelecimento comercial nas proximidades da sua residência. Ao voltar para a casa encontrou o marido a falar, ao telefone, com uma mulher na presença da sua tia. Segundo a nossa entrevistada, os interlocutores conversavam sobre a sua alegada desobediência, o que a deixou ainda mais nervosa.
Passado algum tempo, a cidadã que se queixa de ser vítima de violência doméstica iniciou uma discussão com o agressor em torno do Módulo de Identificação do Subscritor (SIM). De repente, a tia do jovem intrometeu-se e perguntou: “Que mulher é essa que não respeita o marido e tem a ousadia de o confrontar sem remorso? Qualquer dia ela pode abandoná-lo sem nenhuma explicação e devia também perceber que a sua autoridade na família está a ser posta em causa.”
Essas palavras intensificaram a fúria de Ivanildo e o deixaram fora de si. Descontrolado, o jovem tentou ordenar à mulher que abandonasse a casa sem levar nada mas foi desobedecido, o que concorreu para que ele e a sua tia espancassem Marlene tendo causado sequelas na coluna e num dos olhos. A vítima contou-nos ainda que para se defender de tanta brutalidade agrediu a tia do seu marido com algumas dentadas.
Polícia ignora a vítima
“Fui atacada de forma desumana e arrastada para a rua como se fosse um objecto inútil. Largaram-me sem nenhuma preocupação em relação à minha pessoa nem em levar-me ao médico. Por volta das 23 horas do mesmo sábado, decidi quebrar o silêncio e dirigi-me ao Posto Policial de Malhazine, sito a poucos metros da nossa casa, para fazer uma denúncia. Quando cheguei ao local apenas recebi dois documentos, um para o Centro de Saúde do Bagamoyo e outro para o Gabinete de Atendimento à Mulher e Criança Vítimas de Violência Doméstica. Os polícias que me atenderam informaram-me de que não atendiam casos semelhantes ao que eu apresentava”, narrou Marlene.
No domingo, 12, dia do xitique, a cidadã voltou para o seu lar e encontrou muita gente a comemorar. Sem abordar ninguém foi ao quarto repousar porque ainda se ressentia de dores. Ninguém reclamou a sua falta nem procurar saber o que se passava com ela. O momento era de festa: os convivas conversavam, comiam e dançavam na maior naturalidade.
“Sofri sozinha naquele dia e senti-me discriminada porque, para além de o meu marido não me ter saudado, nem sequer tive um prato de comida. Tornei-me uma estranha na minha própria casa somente porque alguém tem o objectivo de me fazer aceitar tudo, sem questionar, até o que fere a minha consciência.”
Aliás, no mesmo domingo, como forma de iniciar um diálogo com o esposo, Marlene informou que esteve na esquadra e no Gabinete de Atendimento à Mulher e Criança Vítimas de Violência Doméstica, porém, o companheiro não prestou atenção às suas palavras.
Um agressor impune
Dias depois, Ivanildo foi intimado pela instituição que lida com a matéria de violência doméstica para se explicar. Ao invés de uma punição que desencorajasse os seus actos, simplesmente recebeu conselhos e a jovem continua a ser agredida, humilhada e ferida psicologicamente.
Contudo, o artigo 13 (violência física simples) da Lei no. 29/2009, sobre a Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher e a Criança, determina que “aquele que voluntariamente atentar contra a integridade física da mulher, utilizando ou não instrumento e que cause qualquer dano físico é punido com pena de prisão de um a seis meses e multa correspondente. Avaliadas as circunstâncias do cometimento do crime e a situação familiar do condenado, o tribunal pode substituir a pena de prisão referida no número anterior pela pena de trabalho a favor da comunidade.”
O mesmo dispositivo legal, criado com a finalidade de “sancionar os infractores e prestar às mulheres vítimas de violência doméstica a necessária protecção, garantir e introduzir medidas que forneçam aos órgãos do Estado os instrumentos necessários para a sua eliminação”, diz, no artigo 14 (violência física grave), que “aquele que violentar fisicamente a mulher, de modo a afectar-lhe gravemente a possibilidade de usar o corpo, os sentidos, a fala e as suas capacidades de procriação, de trabalho manual ou intelectual, é punido na pena prevista no artigo 360 do Código Penal, sendo a pena mínima elevada a um terço e multa nunca inferior a um ano.”
Refira-se que o caso do casal a que nos referimos está sob a alçada do Tribunal do Distrito Municipal Ka- Mubukwana (Benfica). O estranho é que a mulher que reclama devido a maus-tratos há anos manifestou sinais de arrependimento pelo facto de o problema por ela apresentado estar a ser dirimido naquela instância. A sua intenção era que o assunto terminasse entre quatro paredes.
Importa igualmente realçar que a lei supostamente criada para “garantir a integridade física, moral, psicológica, patrimonial e sexual da mulher, contra qualquer violência exercida pelo seu cônjuge, ex-cônjuge, parceiro, ex-parceiro, namorado, ex-namorado e familiares”, parece carecer de outros dispositivos para fazer valer os fins para os quais foi aprovada.