Moçambique ocupa o primeiro lugar na África Austral e o sétimo a nível mundial no que diz respeito aos países com maior índice de casamentos prematuros. Esta situação fez com que a Rede de Organizações da Sociedade Civil (ROSC), que lida com matérias ligadas à criança, “decretasse” uma emergência no combate a este fenómeno, que classifica de “pior prática social prejudicial à criança e em particular à rapariga”. A estratégia de combate ainda está a ser desenhada, mas o caminho a percorrer afigura-se tortuoso por se tratar de um comportamento que está, de certa forma, enraizado nas comunidades, principalmente as das zonas rurais. Segundo a presidente do conselho da direcção da ROSC, Benilde Nhalivilo, citando uma pesquisa de 2008, em Moçambique, 18 porcento das raparigas contraem matrimónio antes dos 15 anos de idade e 52 porcento antes dos 18.
“É muito preocupante”, assevera ao @Verdade, acrescentando em seguida que os casamentos prematuros devem ser encarados como uma modalidade específica de crime. A ROSC está também preocupada com a legislação moçambicana no que se refere à defesa da criança, e entende que as penas aplicadas em alguns casos não desencorajam a prática de determinados crimes.
@Verdade (@V) – O que é a ROSC?
Benilde Nhalivilo (BN) – A ROSC é uma Rede de Organizações da Sociedade Civil que trabalha em prol dos direitos da criança. Tem como membros várias organizações e instituições que têm como missão ou parte das suas actividade proteger e defender os direitos da criança. É uma organização ainda nova. Existe legalmente desde o ano passado (2012) e, neste momento, está a reflectir e discutir os mecanismos de se expandir pelo país, porém, sem deixar para trás a qualidade das suas actividades.
@V - O que isso significa?
BN - Significa que queremos chegar às províncias e distritos, mas para nós não importa só termos também membros nas províncias, queremos desenvolver acções que tenham impacto em todos os locais onde nós estivermos.
@V - Quantas organizações fazem parte da ROSC?
BN - Temos um pouco mais ter mais de 20 organizações. Entretanto, é preciso ressalvar o seguinte: algumas organizações são redes, como, por exemplo, o Fórum Mulher que tem mais de 80 membros e faz parte da ROSC, e o FORCOM (Fórum das Rádios Comunitárias) tem 46 rádios como membros. Então, em termos do número de membros, somos muitos.
@V - Existem legalmente desde 2012, mas sabe-se que trabalham como ROSC há mais tempo...
BN - Na verdade vínhamos trabalhando há algum tempo, mais concretamente desde 2010, mas não legalmente. Isso deveu-se à burocracia que se regista no processo de licenciamento. Que objectivos nortearam a criação do ROSC? BN -Essa é uma pergunta pertinente, porque em Moçambique existem outras associações, tal é o caso da REC, que lidam também com a mesma matéria que nós. Então. quando nós criámos a ROSC a ideia era complementar as actividades que são levadas a cabo por outras associações na área da criança.
@V - Um dos pilares da ROSC é a advocacia e monitoria de políticas públicas. De que forma isso é feito e quais são os outros pontos fortes das actividades da organização?
BN - Bem, realmente o nosso enfoque é a advocacia e a monitoria da legislação e políticas públicas que incidem sobre a criança. Essa é uma actividade que algumas organizações já vinham desenvolvendo, mas achámos que elas, por causa da complexidade das suas actividades, precisavam de algum auxílio. O nosso trabalho é fundamentalmente influenciar aquelas leis que achamos que, de certa forma, não defendem de forma cabal, ou como se espera, os direitos da criança. Por exemplo, neste momento, estamos envolvidos no processo da revisão do Código Penal em que temos propostas concretas sobre o que gostaríamos de ver revisto ou reelaborado nesse instrumento legal.
Isto é, a inclusão ou exclusão de alguns aspectos de modo a defender a criança. Tentamos influir também na questão do orçamento. Pensamos que o orçamento que é alocado para área da criança ainda está aquém do desejado, então junto das entidades competentes temos feito advocacia com o objectivo de influenciar no sentido de se melhorar esse aspecto. Igualmente, temos olhado para a questão da mortalidade infantil, a malária, a cólera e outros aspectos que elevam a taxa da mortalidade infantil e que põem em causa o direito à vida.
Neste momento, estamos envolvidos numa grande campanha sobre os casamentos prematuros. Este é o nosso maior enfoque este ano. Como sabe, o casamento prematuro é uma realidade no país. Moçambique ocupa o sétimo lugar ao nível mundial entre os países com altas taxas de casamentos prematuros. Nós envergonhamo-nos desta posição, tendo em conta os progressos que, como país, temos estado a anunciar em diferentes áreas.
@V – Que outros pilares norteiam as vossas actividades?
BN - Trabalhamos na capacitação de organizações que lidam com os direitos da criança e desenvolvemos actividades de consciencialização sobre a problemática da criança.
@V – No que diz respeito à revisão do Código Penal, concretamente, que aspectos gostariam que fossem revistos?
BN – Há alguns aspectos principais. O primeiro deles é o referente aos casamentos prematuros. Nós queremos que o casamento prematuro seja qualificado como crime. O casamento prematuro ainda não é uma modalidade específica de crime. Para além disso, gostaríamos que se tomasse muito em consideração alguns aspectos relativos à rapariga. Por exemplo, quando se estabelece que no caso em que um sujeito engravida uma rapariga a solução é que eles se casem, nós entendemos que essa solução piora a situação da rapariga e precisa de ser acautelada.
Por outro lado, temos a questão do estupro, a condenação de crime de violação ou abuso sexual. Nós pensamos que as penas devem ser agravadas porque ainda são penas bastante leves. O abuso sexual, por exemplo, só é reconhecido quando ele ocorre de um indivíduo de sexo masculino para o feminino.
As relações anais não estão previstas, o juiz só pode condenar com base noutras leis ou noutras tipologias de crime, mas não com base no articulado que se refere a este aspecto de abuso sexual. A verdade é que existem casos de rapazes que não vítimas de abuso sexual.
@V – Qual tem sido o impacto das penas consideradas leves?
BN – O que acontece é que não desencorajam a prática do crime. O Código Penal deve acautelar no sentido de estabelecer penas mais severas. Sabemos que a lei não serve apenas para condenar, mas também para corrigir certos comportamentos e as penas, quando são leves, até certo ponto, fica-se como uma dúvida sobre até que ponto as pessoas podem ter o receio de cometer um determinado crime. Aliás, sobre a nossa proposta na revisão do Código Penal, nós queremos que o crime de cárcere privado tenha uma pena agravada quando a vítima for menor de 18 anos de idade. Actualmente a pena varia de um mês a um ano de prisão.
@V - Qual é a avaliação que fazem da legislação moçambicana no que diz respeito à protecção da criança?
BN – Eu pessoalmente não gosto de me comparar aos piores. Nós temos tido a tendência de dizer: até porque nós estamos melhor que muitos países da região – mas eu acho que nós temos que nos comparar com os melhores. Eu acho que relativamente à legislação que protege a criança existem aspectos fundamentais que devem ser registados.
Quando se fala da legislação é um pouco difícil não se aliar isso às políticas públicas. Eu acho que precisamos de reforçar o quadro de políticas que protegem as crianças. Uma das questões que, entretanto, como ROSC, nos preocupa é a lentidão na tramitação dos processos. Por exemplo, numa situação de tráfico ou violação, a demora nos processos é um aspecto que joga contra pois, quanto mais tempo se leva na resolução do caso, as provas também vão desaparecendo.
E temos que ter em conta o sofrimento da vítima, a exposição durante o tempo em que deve prestar depoimentos. Então, uma das nossas exigências é que esse tipo de casos tem que ser resolvido no devido tempo e também conforme a lei. Então, o Governo deve reflectir muito profundamente na forma de agilizar a resolução de casos, principalmente nesta área de violência contra a criança.
Em Moçambique, um dos grandes problemas quando se fala de leis ou políticas públicas é a sua implementação. Como ROSC, que acções levam a cabo para reduzir esta tendência?
BN - O grande problema do nosso país é realmente a implementação. As políticas não são implementadas, quando isso acontece, fazem-no de forma deficitária. Estamos preocupados não só com a revisão, mas também com os mecanismos que estão a ser criados para garantir a efectiva implementação das leis. A partir das organizações com que trabalhamos, há várias acções que são levadas a cabo, como, por exemplo, a capacitação de entidades que lidam directamente com a questão da implementação das leis.
Estamos a falar de juízes, procuradores, agentes de serviço de notariado, os paralegais, gabinetes de atendimentos à mulher e criança, entre outras. Trabalhamos muito também a nível da consciencialização. Porque, em última instância, a questão de condenação ou não depende de como o juiz interpreta os factos. Existem os tribunais comunitários, que estão numa situação de “deus-dará”, mas continuam a julgar casos de pensão de alimentos, violência, e isso preocupa-nos.
@V – No âmbito da capacitação, como tem sido a relação com as entidades que devem zelar pela implementação das leis?
BN – Alguns têm aderido, mas a capacitação só não basta. Eles têm de voltar para o terreno e encontrar uma máquina funcional para trabalharem devidamente. E isso muitas vezes não acontece. Os sistemas de administração muitas vezes não são funcionais.
@V - Fala-se muito da necessidade de se eliminar as práticas prejudicais ou que violam os direitos da criança, principalmente nas zonas rurais. Em termos práticos, o que está a ser feito?
BN - O que nós temos feito nessa área é mostrar às comunidades e aos governos locais que tais práticas, apesar de constituírem costumes, são prejudicais. Pegando no exemplo dos casamentos prematuros, o que estamos a dizer é que este é um problema e uma realidade no nosso país. O que pensamos é que o casamento prematuro é uma emergência nacional e deve ser encarado como tal.
Estamos acostumados a falar de emergência quando o assunto é SIDA, cólera, malária, mas o casamento prematuro é uma emergência porque arrasta consigo muitos outros problemas. Ele é uma porta de entrada para que haja mais infecções pelo VIH, para que haja cada vez menos raparigas nas escolas, o que aumenta o analfabetismo, só para citar alguns exemplos. Temos províncias que têm cerca de 20 porcento de casamentos prematuros, outras têm um pouco menos.
Está provado que as regiões onde existe um maior índice de analfabetismo também têm elevado número de casos de casamentos prematuros e má nutrição. É bastante greve que 18 porcento das raparigas se casem antes de completar 15 anos de idade e 55 porcento se casem antes dos 18. É muito preocupante. A região norte lidera essa prática.
@V – Sente-se muita diferença entre os problemas enfrentados pelas crianças da zona rural e pelas da urbana?
BN – Na verdade, tanto na cidade como no campo a situação da criança em termos de melhoria está muito aquém do desejável. Aliás, no campo, por ser o espaço onde há maior pobreza, falta de informação, logicamente que registamos mais casos de violação dos direitos da criança. Já na cidade as próprias crianças têm acesso à televisão, Internet e conseguem discutir e conhecer os seus direitos. Mas a questão de tráfico é um exemplo da discrepância entre os dois espaços.
É que enquanto na cidade as pessoas têm alguma informação, ao nível das zonas rurais nós sentimos que ainda é preciso divulgar muita informação. Há muitos pais que entregam os filhos na maior inocência porque não sabem que existe esse fenómeno de tráfico, ou se sabem ainda não são capazes de identificar as diferentes formas através das quais a sua criança possa ser traficada.
@V - Qual acham que deve ser o papel do sector privado na promoção dos direitos da criança?
BN - Não há dúvidas de que o sector privado tem a sua responsabilidade. Devo confessar que nós ainda não começámos a fazer um trabalhar muito intenso direccionado ao sector privado, mas tenho conhecimento de que a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade e outras organizações estão a trabalhar na questão da responsabilidade social.
O que nós defendemos, entretanto, é que todos nós somos responsáveis por garantir os direitos dos nossos semelhantes. Enquanto as organizações da sociedade civil agem dentro das suas capacidades financeiras, o Estado é o primeiro responsável por assegurar que as pessoas vivam, no mínimo, com os direitos fundamentais garantidos.
@V - Estará o Estado a eximir-se desta responsabilidade?
BN - Seria difícil dizer sim está a eximir-se, mas nós sentimos que existe uma grande lacuna. Por exemplo, na questão da divulgação das leis, não só na área dos direitos da criança, quantas pessoas sabem que os seus direitos estão previstos na Constituição da República? Então, o Estado é o primeiro responsável pela garantia destes direitos. Mas está claro também que o sector privado se deve envolver neste processo.
Aliás, esta questão da responsabilidade social deve começar pelo pagamento de impostos. Pensamos que não basta que uma empresa que desenvolve a sua actividade numa comunidade crie uma escola ou hospital nesse espaço. A empresa não deve fazer apenas o que acha que deve fazer. E o que devem fazer? Uma das questões é o imposto. Devem pagar impostos justos. É uma área que deve ser analisada. Se nós como cidadãos pagamos impostos, é justo que essas entidades também façam o mesmo.