A nova obra literária do reverendo Arão Litsure imortaliza, no espaço e no tempo, as vivências dos refugiados de guerra dos 16 anos em Moçambique. Os mesmos procuraram alívio em Tongogara, no Zimbambwe. Chama-se 25 Contos do Ventre dos Refugiados.
Costuma-se aconselhar as pessoas a não avaliar um livro em função da sua página-rosto, a capa. No entanto, ainda que válido, esse adágio não se pode aplicar à nova criação de Arão Litsure.
Pelo que se percebeu, na cerimónia da sua apresentação, se o Reitor da Universidade Politécnica, Lourenço do Rosário – quem o apresentou – quisesse menosprezar os 25 Contos do Ventre dos Refugiados, fá-lo-ia com base na quantidade das páginas que contém e – em jeito de crítica – começaria por dizer o seguinte:
“O seu autor, através de poucas páginas, dá uma bofetada de luvas brancas aos nossos estudos universitários, e não só, em relação às investigações desenvolvidas em torno da literatura e cultura do nosso país, porque está, exclusivamente, virada para a análise da literatura escrita que herdámos do Ocidente, esquecendo que a maior parte de todos nós, os moçambicanos, têm o seu universo cultural, enraizado na sociedade de tradição e transmissão oral”.
Se Lourenço do Rosário reconhece a importância da produção intelectual na literatura de transmissão e tradição oral e é dirigente supremo de uma instituição de ensino superior, porque é que – até à data da publicação dos 25 Contos do Ventre dos Refugiados – não deu orientação aos estudantes e docentes da A Politécnica para desenvolver trabalhos similares?
O drama é que “o Reitor é chefe de muitas pessoas. Ora, quando as mesmas não querem desenvolver uma determinada actividade, este dirigente não deve coagi-los, pois ele não é um ditador. A situação é extremamente complicada porque, se nós defendemos a liberdade, não devemos defendê-la e tirá-la das pessoas ao mesmo tempo”.
Uma premissa importante
Ficámos com a impressão de que aquela cerimónia de publicação dos 25 Contos, realizada na Universidade A Politécnica, era uma verdadeira aula de sapiência. Senão vejamos: Lourenço do Rosário começou a sua locução (algo que, em certo grau, sublima a literatura de tradição oral em detrimento da escrita) estabelecendo uma premissa.
“A literatura de tradição e transmissão oral precede todas as manifestações literárias que o Homem, enquanto ser social, produz ao longo da sua história como forma de representação social, cultural, histórica, mítica e lendária da sua própria existência”.
Isso significa que, “a literatura escrita aparece muitos séculos depois de o Homem ter existido como ser social”. Afinal, “o que se funda, em primeiro lugar, é a literatura de tradição e transmissão oral que é muito mais rica, tendo uma grande história do que a segunda”. Basta que se tenha em consideração que a oratura é, em si própria, “simultaneamente, sujeito e objecto que veicula o conhecimento, o reflexo do conhecimento e a relação do Homem com a natureza numa perspectiva de educação e cultura”.
O que se sabe sobre o livro?
Sendo a escrita, de que Arão Litsure se valeu para na transcrição dos contos, uma descoberta posterior à literatura de tradição e transmissão oral, há um exercício peculiar que se deve ter em conta antes de se ler o livro. “Os contos foram recolhidos em língua tsonga e ndau, traduzidos para o inglês e, posteriormente, retraduzidos para o português. Portanto, há aqui vários exercícios de crivo que – ao lerem – as pessoas devem ter em consideração o labor e o talento do próprio recolector”.
Se calhar o primeiro grande mérito dessa produção seja a superação de um exercício que demanda o domínio de três dimensões da existência humana: a linguística, antropológica e cultural. E, ao Reitor Lourenço do Rosário, não faltam argumentos: “A pessoa que trabalha a literatura de transmissão oral, além de ser competente linguisticamente, também deve ter o conhecimento cultural e antropológico daquilo que ele vai tratar sob pena de fazer filtragens em relação à sua própria cultura, acabando, muitas vezes, por falsear a informação”.
O livro possui contos recolhidos durante o período da guerra dos 16 anos no campo dos refugiados moçambicanos em Tongogara, no Zimbabwe, em 1991. Além dos referidos textos, o autor também acrescenta escritos da sua autoria, incluindo poemas.
Qual é a importância?
A primeira pergunta, provavelmente, seria: “Porque é que o autor foi a um campo de refugiados, noutro país, a fim de buscar contos de que já se tinha conhecimento?”.
Formulada em relação à obra, para Lourenço do Rosário, esta pergunta revela, em si, um leitura pouco atenta ao livro. Afinal, “ao frisar que estes contos foram recolhidos no Campo de Refugiados de Tongogara, no Zimbabwe, o autor quer chamar-nos à atenção de que, apesar de deslocados das zonas etnolinguísticas do Centro e Sul de Moçambique, a identidade da unidade cultural das referidas populações não se desfez. E o mito do eterno retorno ao solo pátrio permaneceu. As referências da actualização geográfica e histórica, dos mesmos contos, não se alteraram apesar da deslocação dos seus contadores”.
Um esclarecimento
Desenganem-se as pessoas que pensam que, com a morte física dos idosos, o conhecimento desaparece. Isso é uma visão reducionista porque se acha que só o livro é que guarda o saber, a história, depreciando-se a inerência da oralidade.
Ou seja, para Lourenço do Rosário, “a sabedoria oral não se afunda com a morte de um idoso, porque esse mesmo ancião se encarregou de repassar a sua sabedoria às gerações que fazem parte da cadeia de sucessão social da sua comunidade. Da mesma forma como a ourivesaria não desaparece com a morte de um ourives, nem a arte de caçar o elefante desaparece com a morte de um velho caçador”.
Há uma necessidade de se “reflectir muito bem sobre os mitos que nos infundem sobre a supremacia de determinadas formas de estar e de ser”. Afinal, o problema não está na morte do velho, mas na morte da sua essência, da mesma forma que podemos falar de genocídio, quando há um massacre que impede que os valores possam ser retransmitidos a outras gerações.
Aliás, o genocídio pode até ser cultural. Por exemplo, “quando uma geração inteira, urbanizada, já não sabe que o frango provém da galinha e não do supermercado. Há crianças que – por nunca terem visto uma galinha – pensam que o frango é originário do supermercado. Isso significa que houve um genocídio cultural porque não se teve tempo de dizer às crianças que o frango foi um animal vivo”.
É nesse sentido que, em relação à obra de Arão Litsure, Lourenço do Rosário conclui que são fenómenos sociais colectivos – como a aculturação, o colonialismo e a assimilação – que podem matar a nossa cultura e não a morte física do velho. “E a intenção de Arão Litsure foi tentar mostrar que apesar da deslocação das populações moçambicanas para o Campo de Tongogara, ao longo do conflito armado no país, não houve genocídio cultural”.
É nesse sentido que “os 25 Contos do Ventre dos Refugiados fizeram renascer a esperança de que as ‘bibliotecas’ não morreram, apesar de que foram deslocadas. Ou melhor, refugiadas, elas encubaram a sabedoria num admirável exercício de retorno ao útero materno, isto é, à nossa pátria – e porque não dizer – amada”.