A renúncia de João Caldeira ao cargo de presidente da Federação Moçambicana de Boxe (FMBOXE) no passado mês de Outubro significou, para muitos, sobretudo para a família do boxe, o fim de um estágio para esta modalidade desportiva. Todavia, o desejo de ver aberta uma nova página – ainda que num curto espaço de tempo – tornou-se um verdadeiro bico-de-obra. No último fim-de-semana, aquele organismo organizou, finalmente, o campeonato nacional relativo à época de 2012, mas que de “Nacional” só teve apenas os pugilistas que se encontraram na cidade da Matola.
Se a ideia de se realizar o Campeonato Nacional de Boxe do ano de 2012 em 2013 fosse para se apurar um vencedor por excelência, esse seria, sem dúvidas, a desorganização. De campeonato, o que houve na cidade da Matola, no Sábado e Domingo, só teve apenas o nome e nada mais do que isso. Esteve longe de dignificar um país que aposta (também) no boxe como uma modalidade olímpica.
A organização veio mostrar quão o país pode ser tão desalinhado no que à realização de eventos desportivos diz respeito, e brilhante na marginalização do desporto moçambicano, sobretudo das modalidades individuais.
Uma nota negativa à organização
Depois de sucessivos adiamentos, foi anunciado, finalmente, o dia 8 de Março, última Sexta-feira, para o arranque do Campeonato Nacional de Boxe, ora programado para ter lugar na Escola Industrial e Comercial da Matola. Entretanto, chegado o dia, no pátio daquela instituição de ensino estavam apenas os estudantes que se desdobravam nas suas actividades curriculares. Ou seja, não havia nada ligado ao boxe.
O @Verdade, que se fez ao local na expectativa de cobrir o evento, surpreendido com o que encontrou, tratou de entrar em contacto com os organizadores do certame para se inteirar das razões do não arranque naquela Sexta-feira e/ou naquele local. A resposta obtida, do presidente da Comissão de Gestão da FMBOXE, António Paulo, esta: “Os árbitros boicotaram o evento alegadamente por falta de condições”, e que o local também foi transferido para o Parque dos Poetas, no centro da cidade da Matola.
Porém, fontes ligadas à organização do evento confidenciaram à nossa equipa de reportagem que a questão da exigência de pagamento de um valor de 19 mil meticais por parte dos árbitros, ou seja, a cada um deles, estava à margem da mudança do local, e que este se tratava de um outro assunto. Na verdade, o desacordo de última hora entre o director daquela instituição e a comissão de gestão, no que diz respeito ao aluguer do espaço, esteve por detrás da transferência do ringue.
Já no sábado, com aquele palco de combates montado nas primeiras horas no Parque dos Poetas, o cenário vivido foi de todo invulgar. O certame, que devia ter arrancado às 14 horas, sofreu um atraso de cerca de três horas por razões óbvias: os pugilistas chegaram ao local no intervalo entre as 15 e as 16 horas e, antes de competir, levaram a cabo o habitual desfile que, por sua vez, consumiu cerca de quarenta e cinco minutos.
Ao que se apurou, este atraso deveu-se à demora nas refeições servidas aos atletas das províncias que estiveram hospedados na Escola Central do Partido Frelimo, na Matola. Só no final do dia é que os pugilistas pegaram nas luvas para competir.
Porém, foram obrigados a suspender os combates devido à falta de iluminação no local, para a frustração total daqueles que desde 2011 não conheciam a cor de um ringue e o calor de uma luva. Os assaltos adiados prosseguiram no Domingo de manhã, para às 15 horas cumprir-se com a normalidade do calendário.
Esta situação fez com que alguns atletas subissem três vezes ao palanque, algo inadmissível no boxe quando se sabe que é uma modalidade de luta. Aliás, por esta ou por outras razões, houve ferimentos que exigiram socorro imediato por parte dos paramédicos presentes no local.
Outro cenário, porém grave, que não fugiu à vista da nossa equipa de reportagem, teve a ver com o equipamento de combate. Os únicos acessórios novos ou em condições para um campeonato que se queira de alto rendimento de um país eram as luvas, os capacetes e as ligas. Os pugilistas da mesma província, como, por exemplo, os de Nampula, tiveram de usar o mesmo equipamento para os combates, incluindo os próprios protectores de dentes.
Sobre este assunto, António Paulo atirou a culpa às academias, aos núcleos e, em última instância, às próprias associações, pois “é tarefa destes equipar os seus próprios atletas”. A fonte deixou entender que a oferta de luvas, de capacetes e de ligas não passou de um acto benevolente daquele organismo que gere o boxe no país. Ainda que tenham recebido este equipamento, o @Verdade soube dos próprios atletas que eles só puderam utilizá-lo duas semanas antes do início da prova.
Durante o certame não houve água para os pugilistas, nem refeições, sobretudo no Domingo, dia em que muitos permaneceram das 8 horas até por volta das 19 horas; não estavam disponíveis balneários em condições e, quer o público, quer os boxeadores eram obrigados, para satisfazer as suas necessidades biológicas, a recorrer às árvores que se encontram na parte traseira daquele recinto, e faltou a premiação monetária, tendo havido, apenas, a oferta de medalhas e de troféus, o que frustrou alguns pugilistas.
Importa referir, no capítulo da organização, que Gaza foi a única associação provincial que não se fez representar com pugilistas neste certame, mas o seu presidente e o respectivo secretário-geral estiveram na Matola para assistir ao campeonato.
Os campeões
No que aos vencedores diz respeito, a prova foi uma vez mais dominada pelo Clube Desportivo Matchedje de Maputo, que se afirmou como uma potência do boxe moçambicano. O clube militar foi ao pódio arrecadar medalhas de ouro em todos os combates em que esteve inserido, num total de quatro.
Para o triunfo foi indispensável o contributo da família Máquina, uma referência nesta modalidade desportiva, com o atleta olímpico Juliano a conquistar a prova, na categoria dos 49kg e Gento, nos 69kg. As outras medalhas foram obtidas por Uatch António (60kg) e Moisés Manhiça (56kg).
Na segunda posição terminou o Ferroviário de Maputo, que somou duas medalhas de ouro, uma para Filipe Manjate nos 52 kg e outra que ficou com Daniel Macitela, nos 75kg; Hélio Calisto (52kg) e Clésio Zandamela (74kg) com medalhas de prata e Cremildo Artur, que obteve a medalha de bronze na categoria dos 56kg, foram os restantes medalhados. A Academia Lucas Sinóia completou o pódio com duas medalhas de ouro arrebatadas por Francisco Máquina na categoria dos 64kg e Nuro Ismael, nos 81kg.
A província de Nampula foi a mais bem colocada a nível das delegações de fora de Maputo, tendo os pugilistas Aníbal Luís (56kg), Francisco Nhanchele (60kg), Janqueiro Salvador (64kg) e José António (69kg) dominado quanto às medalhas de prata. Três de bronze foram para Carlos Naime (49kg), Baizene Celestino (52kg) e Matiso Basílio (75kg).
Em femininos, o troféu coube à Academia Lucas Sinóia que conquistou duas medalhas de ouro e igual número de prata. O destaque vai para Maria Mamela nos 60kg e Alcinda Helena nos 75kg.
A verdade dos intervenientes
Uatche António, capitão do Matchedje de Maputo
Estamos muito felizes pelo título por este vir em reconhecimento ao trabalho que temos vindo a fazer. Viemos com o objectivo de ganhar tudo e conseguimos.
Não existe segredo para o nosso sucesso. Os nossos ganhos são fruto de uma boa preparação e de treinadores instruídos. É certo que todos os nossos pugilistas são militares, incluindo os próprios treinadores, mas sem treinos, este troféu não seria possível.
Daqui em diante vamos trabalhar para chegar aos Jogos Olímpicos de 2016 e temos a certeza de que estaremos lá e em maior número. Temos essa capacidade.
Lucas Bombe, presidente da associação de Gaza
O boxe na província de Gaza está muito mal. Não por má-fé da associação, mas sim por parte dos elementos que estão a gerir esta modalidade a nível do país. Não temos nenhum material, desde o ringue até ao equipamento para os pugilistas. Somos uma associação carente de tudo, senão até neste campeonato teríamos no mínimo um atleta. Repare que nem me recordo da última vez que Gaza organizou um campeonato provincial.
Este campeonato nacional é uma vergonha para o país. Foi simplesmente bom para conhecer os que não querem ver o desenvolvimento desta modalidade no país, no caso dos árbitros. É inconcebível e vergonhoso boicotar o arranque de uma competição para exigir 19 mil meticais.
Nelito Zacarias, pugilista de Manica
Foi um péssimo campeonato, ainda que tenhamos conquistado uma medalha de prata. Tenho a lamentar o facto de ter treinado apenas duas semanas e de ter recebido o equipamento há uma semana do arranque da competição. Tivemos um dia de viagem sem descanso e, mesmo assim, competimos no dia seguinte. Em Manica nem sequer temos ringue, quanto mais competições internas.
Misheke Ruwua, presidente da associação de Manica
Aqui houve coisas incríveis, desde a chegada tardia do equipamento até ao facto de um atleta nosso ter efectuado três combates num só dia. Nós, a nível do país, não estávamos preparados para organizar um campeonato nacional.
José António, atleta de Nampula
Não sei que nome podemos dar, mas de campeonato nacional não tem nada. Há nove anos que estou no boxe e nunca passei pelo que passei aqui: combater duas vezes num só dia. Lesionei-me de manhã, mas à tarde fui obrigado a subir ao ringue.
A federação não deu equipamento senão as luvas e as fitas. O resto foi à custa do nosso presidente da associação. Este foi, sem dúvidas, o pior campeonato nacional que já vi enquanto pugilista.
Aqui houve tribalismo e falta de respeito para com os atletas das províncias. Até no boxe Moçambique é só Maputo? Se as coisas continuarem como estão, vou dar um ponto final à minha carreira. Prefiro competir no bairro.
Lucas Sinóia, treinador
Não se pode avaliar este campeonato. A única coisa que se fez aqui foi apenas cumprir-se com o calendário de boxe referente ao ano passado. Temos de realçar o facto de ter havido contacto entre os pugilistas das diversas províncias para a troca de experiências.
O problema do nosso boxe é muito profundo mas, acima disso, precisamos de estar unidos e caminhar de mãos dadas para que possamos resolver os nossos próprios problemas.
Renato, presidente da associação de boxe de Inhambane
O jornalista presenciou toda a miséria. Escreva o que viu e diga aos leitores que o presidente da associação de boxe de Inhambane não quis falar por estar abalado com a pouca-vergonha que houve aqui.
A assembleia-geral da federação
Já na segunda-feira, ou seja, um dia após o término do pretenso campeonato nacional, decorreu na sede do Comité Olímpico, em Maputo, a assembleia-geral ordinária da federação cujo objectivo era eleger um novo corpo directivo depois do vazio deixado por João Caldeira, que renunciou ao cargo no passado mês de Outubro. No entanto, antes da agenda principal do evento, os presentes debateram e chumbaram por unanimidade a realização daquele certame, apelidado “campeonato de abertura da época desportiva 2013”.
As associações exigiram, por carta, a suspensão por tempo indeterminado de todos os árbitros que estiveram no certame da Matola, deliberação acatada pela mesa da assembleia- geral e entregue ao novo presidente para posterior implementação.
Os representantes das associações provinciais atribuíram responsabilidades da desorganização vivida na Matola ao presidente da Comissão de Gestão da FMBOXE, António Paulo que, por sua vez, afirmou que realmente foi um campeonato improvisado, mas que só espelhou o actual estágio do boxe em Moçambique. Aquele dirigente disse aos presentes que “este foi um campeonato possível”.
No que diz respeito ao relatório de contas, houve nesta assembleia-geral uma revelação bastante curiosa: um dia após a renúncia de João Caldeira ao cargo de presidente da FMBOXE, as contas bancárias daquele organismo registaram extracções monetárias na ordem de 42000 e 27400 meticais, separadamente. Segundo António Paulo, só o presidente demissionário é que podia movimentar a conta bancária da federação, revelando, por outro lado, que desconhece totalmente as razões e para que fins houve tal levantamento.
Benjamim Uamusse foi eleito por unanimidade
Único candidato a ocupar o posto de presidente da FMBOXE, Big Ben foi confirmado e aclamado como o novo gestor do boxe no país pelas seis filiações provinciais, nomeadamente: Nampula, Sofala, Manica, Inhambane, Gaza e Cidade de Maputo. Ben vai ao encontro de um edifício arruinado que, segundo se soube na assembleia-geral, padece de muitos problemas, desde os financeiros até os organizativos que se resumem na falta da massificação e de competições a vários níveis, quer nas províncias, quer ao nível nacional.
Falando instantes depois da sua eleição, o novo dirigente do boxe no país disse que vai concentrar-se na formação de mais pugilistas e juízes, bem como assegurar a organização de competições regulares e a existência de material desportivo em todas as províncias que movimentam a modalidade. “Quero trabalhar com uma direcção de campo e não de gabinete. A minha prioridade é trabalhar com o norte do país” revelou Big Ben.
Uma das ideias, segundo aquela fonte, é ter no mínimo 30 combates por ano como forma de granjear mais talentos, procurar manter a modalidade nos Jogos Olímpicos e qualificar mais pugilistas para aquele evento. O seu mandando tem a duração de quatro anos.