Na sua última produção teatral, a jovem actriz e encenadora moçambicana, Maria Atália, caminhou em direcção à morgue, vasculhando os temperamentos da morte. É uma conexão grotesca que mete medo, por isso, para tal, se exige uma paixão assombrosa por parte de quem quer travar “uma relação tranquila com a morte”...
Maria Atália tem um defeito. Não sabe dizer não. Em resultado disso, no mundo do teatro, já trabalhou – e, em certo sentido produziu – com “monstros”. Sim. Grandiosas peças teatrais. Basta que se recordem de “O doente imaginário”, da “Psicose”, do “Culpado?”, incluindo, a recém-terminada peça teatral “Lá na morgue”.
Os amantes de teatro que têm acompanhado o seu percurso artístico, irão convir que, em todas as peças referidas, há muita loucura, cenas excêntricas, grotescas que, invariavelmente, metem medo. Maria Atália, para o gáudio dos seguidores da sua produção cénica, brinca com tudo isso e, em certo grau, evolui na senda do teatro moçambicano como uma protagonista que procura o seu lugar. Diga-se, a brincar com o sobrenatural.
Se alguém me trouxer um tema de interesse para a produção teatral, e eu conseguir compreender o seu conteúdo, numa situação em que o dito texto é emotivo, não consigo manifestar algum receio”, considera que ao mesmo tempo que justifica a sua posição “gosto de brincar com os tópicos da vida sobrenatural”.
A nossa experiência revela que há sempre um rasto de morte, uma bolsa de loucura, nas suas peças, a justificar a sua relação com os ditos tópicos. No entanto, o facto de esta actriz, cuja actuação nos assombra, manifestar-se ausente nos palcos não é menos preocupante.
Compreenda-se, diz, “uma das razões que justifica a minha reduzida aparição nos palcos, como actriz, é que como tal tenho muito receio. No entanto, na qualidade de encenadora, não penso no que a sociedade dirá sobre a minha produção. Sou egoísta. Aplico-me no desenho do cenário artístico, nos actores – se eles gostam (ou não) da experiência em que irão passar – incluindo a obra no seu todo”.
Ignota e egoísta
Se alguém lhe perguntar porque razão desenvolve uma relação intimista com o sobrenatural, a psicose, a morte, (...), muitas vezes, Maria Atália não saberá responder de forma exaustiva. Ainda que ignota, em relação ao referido vínculo é egoísta.
“Não sei porque razão. Mas os temas que eu exploro, de facto, me identificam. Se formos a analisar a história dos grandes músicos, perceberemos que eles possuem uma certa linhagem, um cunho artístico de tal sorte que quando se escutam as suas músicas na rádio – por mais que o locutor diga de que cantor se trata – o ouvinte consegue, a partir do dito indício, distinguir o músico”, refere dando a impressão de que é uma grande artista.
Os exemplos de Maria Atália não se esgotam, por isso, “perante nós, os assíduos de um determinado jornal e apreciadores da escrita de um repórter, por mais que ele não assine as suas obras, os seus cunhos artísticos o denunciam. O mesmo sucede na gastronomia e no teatro”.
Portanto, na compreensão de Atália, “a loucura e a morte são temas bons. Todos nós temos um pouco de demência em nós. Pode suceder que em mim, esta dimensão tenha uma percentagem saliente. A diferença é que eu, contrariamente a muitas pessoas, não tenho medo da minha condição de loucura”.
A actriz leva o seu posicionamento ao extremo, de modo que considera que “a minha relação com a morte é tranquila. Eu não sou como as pessoas que quando se defrontam com um cidadão – supostamente louco – manifestam temores, como se a sua loucura lhes pudesse infectar. Por exemplo, há pessoas que vão ao velório, sofrem e, em certo sentido, imploram para que a morte não se aproxime delas. É uma lástima. Há pessoas com pavor da morte, ao passo que eu tenho noção da minha mortalidade. Sei que, por qualquer razão, posso ficar demente. Então, porque não curtir a minha morte ainda viva? Porquê não gozar da minha loucura ainda consciente. Quero realizar uma relação amorosa com a morte”.
Porque determinadas pessoas consideram que, no nosso país, psicólogos e psicanalistas são para as elites, quais, então, seriam os perigos que do irromper de uma série de bolsas de loucura, como a criminalidade, a prostituição, a mendicidade, a demência, entre outras em Moçambique?
“Os problemas sociais, incluindo as suas loucuras, são para todos nós a quem afectam de forma directa ou indirecta”, considera portanto, para si, os moçambicanos – incluindo os que têm medo da loucura – deviam “apostar mais na acção dos psicólogos para aceder ao apoio de que necessitam. Isso seria importante para a redução dos elevados níveis de loucura social”.
Ou seja, devia haver uma aproximação cada vez maior em relação às pessoas que são entendidas pela sociedade como sendo dementes. Falta-nos um espaço-fórum para que as pessoas possam expor os seus problemas, receios e temores, porque as tentativas de se limitar as liberdades de alguém – o que não se deve confundir com libertinagem – criam frustrações nas pessoas.
As pessoas que não se expressam – porque não lhe é dado o espaço para o efeito – acumulam frustrações. E quando fingem que querem-lhe escutar, por causa desse contexto, ele acaba por falar sobre assuntos delicados e, por vezes, ofensivos porque está a procurar desabafar. Ele divulga muita informação que não está filtrada. Em resultado disso, a sociedade conclui que ele é/está demente – o que pode não ser verdade.