Falar simplesmente de um campeão nacional pode ser redutor quando a ideia é apresentar o cidadão moçambicano Arnaldo Salvado. É, na verdade, o treinador que mais títulos nacionais conquistou desde que o futebol moçambicano se conhece como profissional. Só para se ter uma ideia, no que toca aos campeonatos nacionais, conta neste momento com dez troféus e sete taças de Moçambique.
Foi o primeiro treinador a conduzir uma equipa moçambicana à fase final de uma afro-taça e ainda, das duas vezes, esteve à frente da selecção nacional. Chegou à fase final de um Campeonato Africano de Futebol (CAN).
Na entrevista concedida ao @Verdade, Arnaldo Salvado falou do seu trajecto como treinador de futebol e, ainda, de uma forma didáctica mostrou como é que se pode ser campeão num país onde o futebol não está ao nível desejado. Salvado, não deixou também de, no seu estilo característico, falar do que lhe vem à alma, atacando novamente a corrupção que na sua óptica carcome o país no geral, não sendo o futebol uma excepção
(@Verdade) – Quem é o Arnaldo Salvado?
(Arnaldo Salvado) – Sou um cidadão moçambicano, nascido em Quelimane a 27 de Janeiro de 1959. Fiz o ensino primário em Pemba e em Nampula, tendo chegado à Lisboa para o ensino Secundário. Frequentei o terceiro ano de Engenharia Civil na Universidade Eduardo Mondlane.
Comecei a trabalhar na Electricidade de Moçambique e depois fui transferido para Pemba onde iniciei com a minha carreira de treinador de uma equipa de seniores. Mas já estava ligado ao desporto com a organização de campeonatos entre faculdades como também a nível dos bairros onde estava também envolvido nos torneios entre escolas, isto entre os anos 1975 e 1976.
Juntamente com a Associação da cidade, nos anos de 1977 e 1978 implementei o futebol de salão onde fui igualmente treinador na Académica e jogador de futebol no Grupo Desportivo de Maputo. Em 1979 fui convidado pelo senhor Júlio Rito para treinar a equipa juvenil do Costa do Sol, na altura Benfica de Maputo. Trabalhei com os juvenis por dois anos e outros dois com os juniores. Fui depois enviado a Norte do país onde por quatro anos tornei-me treinador da equipa sénior de Pemba.
Regressei a Maputo em 1987 onde por dois anos fui adjunto treinador do Costa do Sol. Durante este período fui constantemente enviado pelo clube a Portugal para fazer os cursos de treinadores da UEFA nos quais me formei e, inclusive, tive a oportunidade de estagiar em grandes clubes como o Benfica, Belenenses e o Sporting Clube de Portugal onde obtive mais experiência. Em 1990 passei a assumir as funções de técnico principal da equipa do Costa do Sol, onde fui campeão de 1991 a 1994 ou seja, tetra-campeão.
Por problemas de relacionamento com a direcção saí em 1995 para o Ferroviário de Maputo onde fui campeão em 1996, 1997, 1998 e em 2002, onde saí também por problemas de relacionamento com os dirigentes. Segui para uma aventura de meio ano na África do Sul para treinar os Black Leopards. Porém, não me dei bem com a forma profissional como estava organizado o futebol sul-africano tendo regressado ao Maxaquene onde fui também campeão em 2003.
Mais tarde tive uma passagem pelo Costa do Sol antes de rumar para uma equipa nova da segunda divisão, o Atlético Muçulmano, a qual fiz subir à primeira onde no seu primeiro ano sagrou-se vice-campeã nacional e vencedora da Taça de Moçambique. Isto antes de regressar ao Maxaquene.
Tive também passagens pelas selecções nacionais, primeiro dos juniores em 1986 e 1987 com o Altenor Pereira, depois na principal como adjunto de Viktor Bondarenko na campanha de qualificação para o CAN da África do Sul de 1996 e como seleccionador nacional na campanha de 1998 para o da Burkina Fasso. Nestas duas campanhas Moçambique conseguiu qualificar-se.
(@V) – Por estes dez títulos que já ganhou, considera-se melhor treinador do país?
(AS) – É uma questão que nunca me preocupou e jamais me irá preocupar. É uma questão irrelevante, porém factos são factos. Sou o treinador que mais campeonatos tem ganho em Moçambique e isso ninguém me irá tirar. Agora, o ser melhor, isso pouco importa porque temos cá, no país, bons treinadores que dependendo das condições e das equipas que têm não ganham títulos.
(@V) – E o Maxaquene?
(AS) – Eu não digo que o Maxaquene é a melhor equipa em Moçambique, mas foi a mais regular até tornar-se campeã, isso também é um facto. Ser ou não melhor, depende da análise que cada um faz e dos indicadores que são postos à mesa para se chegar a essa conclusão.
(@V) – Sente-se feliz pelos títulos?
(AS) – Em termos pessoais estes títulos orgulham-me bastante, porque mesmo a nível internacional não é qualquer treinador no mundo que consegue ter estes títulos todos, mesmo aqueles que comandam as equipas mais ricas do mundo.
(@V) – Vai parar por aqui?
(AS) – Não, quero somar mais. Enquanto eu tiver vontade, motivação e disposição, de certeza que vou continuar a fazer o que mais gosto. Eu abandonei a engenharia civil para correr atrás de uma bola e não estou de forma nenhuma arrependido porque neste desporto fiz muitas amizades e viajei pelo mundo.
(@V) – Vive do futebol?
(AS) – Sinto-me absolutamente realizado e feliz. O futebol é a minha profissão, é a minha paixão. O mais importante para mim é sentir-me feliz comigo mesmo e com o trabalho que gosto de realizar. E também porque sei que posso realizar com competência.
(@V) – Como é que se pode ser campeão em Moçambique?
(AS) – A base de tudo é a competência. O segredo do sucesso em qualquer área profissional passa pela mestria embora existam outros factores como por exemplo o talento, a paixão e o gosto pelo trabalho. No futebol é preciso saber estudar e estar permanente actualizado para saber fazer, como fazer e quando fazer; Ter uma capacidade enorme de gestão e liderança;
Ter auto-confiança e saber transmití-la aos jogadores e a todos os que o rodeiam. Só acumulando estes itens se pode ter sucesso. Mas é claro que a estes juntam- -se a disciplina, o trabalho duro, a qualidade dos jogadores, as condições que a direcção de um clube proporciona em termos de estabilidade emocional e financeira aos seus jogadores bem como materiais.
(@V) – Sente que o sucesso de uma equipa depende do treinador?
(AS) – É um facto que tenho dez campeonatos nacionais e seis ou sete taças de Moçambique, mas não fui eu que os conquistei. Para mim o grande mérito vai para os atletas. Agradeço sempre aos dirigentes que proporcionaram a mim e aos atletas as condições de trabalho que permitem sempre uma estabilidade e qualidade, mas a minha eterna gratidão vai sempre para os jogadores que fazem de mim um eterno e verdadeiro campeão.
Tu podes ser um treinador com boas ideias mas se os jogadores não implementam e não acatam o teu comando, nunca vais ser campeão.
(@V) – É possível ser campeão numa equipa com potencial financeiro muito baixo?
(AS) – Sim, há sempre uma marca muito original do próprio treinador. Eu já passei por casos de género no Costa do Sol onde fui campeão, no Atlético Muçulmano onde fui vice-campeão nacional e vencedor da Taça de Moçambique.
O Maxaquene é actualmente uma equipa que perdeu a capacidade financeira e mesmo assim foi campeão. É que olhando neste prisma, é preciso observar também que há equipas com um grande potencial financeiro como Vilankulo FC, o HCB de Songo, a Liga Muçulmana que não são capazes de alcançar o sucesso, porém isso não pode significar que não houve trabalho, até porque há muitos a competir.
(@V) – Qual dos dez títulos foi o mais difícil?
AS – Todos foram difíceis. Pese embora o campeonato tivesse verificado mudanças nos seus moldes, nenhum campeonato foi fácil para mim e sempre ganhei por um número reduzido de pontos e por vezes até na última jornada. @V – Lembra-se de algum título em particular que achou extraordinário? AS – O de 2003 com o Maxaquene. Lembro-me que foi na última jornada contra o Costa do Sol em que o Estádio da Machava registou a maior enchente da sua história.
@V – Foi também seleccionador nacional e das vezes em que treinou fomos ao CAN. O que falha hoje?
(AS) – O problema não está com a selecção nacional de futebol. É um problema de todas as modalidades, podemos até nos iludir com o hóquei em patins mas que também não tem muita expressão no país e no continente africano bem como do basquetebol feminino onde somos potenciais candidatos aos títulos.
Mas nós organizamos os últimos Jogos Africanos e o que lá ganhamos? Nada. Como é possível numa cidade capital como é Maputo onde existe cerca 3 milhões de habitantes existirem apenas duas a três equipas de andebol, não existir a ginástica e o atletismo ser a miséria que é? Isto é sinal de que alguma coisa está mal sobretudo no capítulo estrutural do país.
(@V) – Mas de concreto, o que falha?
(AS) – Isto tem a ver com as condições financeiras do país onde as empresas são deficitárias e o dinheiro que têm para canalizar ao desporto também é pouco. Mas o principal erro é da política governamental quer para o sector da educação quer para o próprio desporto.
Durante 15 anos fechamos a Escola de Formação em Educação Física e não se formaram os professores; Não se realizou o desporto escolar em nenhuma das modalidades mesmo naquelas onde a pé descalço é possível; Os negociantes dos municípios já vende(ra)m os terrenos desportivos; As infra-estruturas estão todas degradadas; O material desportivo cada vez mais caro;
Os clubes pouco se importam com a formação, enfim. É preciso uma política que incentive o desporto no país sobretudo na formação, mas para tal é preciso que haja vontade política. Numa palavra: a selecção é o espelho da falta de capacidade organizativa e formativa de um país.
(@V) – Se fosse convidado a ser seleccionador nacional hoje, aceitava?
(AS) – Eu já estive no comando da selecção com muito orgulho e por ser moçambicano. Ofereci os meus serviços durante cinco anos de forma gratuita e fi-lo por amor ao trabalho, por paixão e auto-estima. Estávamos a sair da guerra e o país estava ainda em reconstrução.
E a partir do momento em que começou a existir dinheiro na federação, começaram-se a evidenciar outros valores como amiguismo, o oportunismo, onde normalmente se valoriza mais o passaporte do que a competência. Nestes moldes eu não estou interessado em treinar a selecção nacional.
(@V) – Mas já teve convites?
(AS) – Já tive vários convites e sei que com a minha experiência acumulada, a minha inteligência e as minhas ideias posso tentar dar uma outra dinâmica à organização do futebol no país. Talvez um dia eu venha a colaborar mas somente junto do governo e não com a federação aliás, com esta federação não.
(@V) – Foi convidado para ser Ministro da Juventude e dos Desportos?
(AS) – Não.
(@V) – Mas o que mudaria no nosso futebol se fosse ao governo?
(AS) – Mudaria muita coisa relacionada com a verdade e a ética desportiva, a anti-corrupção, a organização e a planificação. Hoje se fores a perguntar à federação qual é o seu plano de actividade, absolutamente que não te responderiam porque não têm nada e nem sabem o que fazem. Eu incentivaria o envolvimento das escolas e dos bairros; melhoraria as infra-estruturas e indicaria ao governo para trabalhar na formação de professores, de treinadores e envolver os governos provinciais e distritais na massificação desportiva.
@V – Acha que a mudança de treinadores ajuda no sucesso das equipas?
AS – Esse é um dos grandes entraves do sucesso quer dos clubes quer das selecções. É preciso dar-se tempo ao tempo e acabarmos com essa mentalidade de querer o sucesso imediato. O desporto real em Moçambique não permite que hoje critiquemos este treinador para que saia e amanhã venha aquele. O futebol moçambicano em particular não pode funcionar como uma dor de cabeça em que basta uma aspirina para desaparecer de uma hora para outra, veja o exemplo do Desportivo de Maputo que trocou Matine por Semedo.
(@V) – O Arnaldo Salvado tem insistido sempre na corrupção no país. O que tem a dizer?
(AS) – Eu nasci numa família humilde, com os valores sociais e morais salvaguardados. Aprendi que ao trabalho é preciso dar-se o valor, o respeito e que acima de tudo prevaleça a ética. E se vejo que esses preceitos estão a ser contrariados, fico profundamente ofendido. Eu sou um inteiro defensor da verdade desportiva e serei para sempre um indivíduo frontal embora isso possa ferir algumas pessoas sem que haja essa intenção.
(@V) – Mas como é que funciona essa corrupção?
(AS) – Ela é estrutural. É do país no geral: são professores que são corrompidos para deixar passar ignorantes; são os polícias que se corrompem promovendo acidentes; São os deputados que no lugar de defender o povo se deixam corromper para terem o poder e manipular o mesmo poder; Repare que o Presidente da República quando chegou ao poder falou de combate à corrupção mas que no fim do dia não vemos nada disso a acontecer.
(@V) – Mas no desporto em particular?
(AS) – No desporto surgiram equipas com capacidade financeira choruda mas que não se sabe da sua proveniência, nem mesmo o governo sabe e questiona. Por outro lado temos árbitros que não têm emprego e com salários muito baixos e isto tudo advogado pela falta de uma legislação desportiva.
E tudo começa da base ao topo ou seja, a partir do BEBEC até aos jogadores que são vendidos para fora, todos com idades e passaportes falsificados, isto com a grande conivência da própria Federação Moçambicana de Futebol.
E depois quando damos a cara para falar destas coisas, nos tornam em alvos a abater e essas pessoas com poder, por vezes financeiro, compram jornais e jornalistas para falar mal de nós, fecham-nos os clubes e até nos castigam.
“Não conheço Sadique”
(@V) – O que tem a dizer sobre o caso “Sadique”?
(AS) – Estou tranquilo e ao mesmo tempo revoltado. É uma campanha montada por alguém que já no ano passado tentou divulgar um vídeo também montado contra mim. Contudo, vou proceder às acções judiciais que tenho direito para defender a minha imagem pública. Procedi à entrega de todos os dados à Procuradoria para posterior investigação e daí se descobrir quem é de facto o corrupto.
(@V) – Mas contactou o Sadique?
(AS) – Não conheço o Sadique. Nunca falei com ele pessoalmente nem telefonicamente, tenho todo o meu registo telefónico e vou processá-lo por difamação e calúnia. Isto tudo é muito estranho. O tal Sadique nunca mais jogou no Incomáti e está desaparecido. Mas a mim o que mais preocupa é encontrar o bandido e o mafioso que está por detrás desta manipulação.
(@V) – Vai continuar no Maxaquene?
(AS) – Gostaria de continuar no Maxaquene porém, essa decisão vai depender da vontade da direcção até porque é preciso entender que sempre saí dos clubes por desentendimento com as direcções. Não é minha vontade abandonar o Maxaquene.