Costa Neto, autor do trabalho discográfico “Mandjolo”, é um célebre músico moçambicano radicado, há anos, em Portugal. Numa conversa mantida com @Verdade, o artista revela que foi impelido a abandonar o país. Descubra os seus argumentos.
@Verdade: De uma forma resumida pode falar-nos da sua infância?
Costa Neto (CN): Nasci no campo, onde passei a minha infância. Penso que essa experiência foi um privilégio porque as cidades – parecidas em quase todo o mundo – são desprovidas de muitos valores que nas zonas rurais se preservam. Os meus primeiros anos de vida foram passados nos montes da Ponta do Ouro, onde o meu pai nasceu. Ele era um faroleiro. Aprendi muitas práticas culturais e tradições locais.
@Verdade: Sabe-se que concluiu o ensino técnico e, logo a seguir, em 1988, foi convidado a leccionar, mas recusou-se. Quer falar-nos das razões?
CN: Não fui convidado. Fui mandado para uma formação intensiva e acelerada na área de professores. Foi uma surpresa. Nessa altura havia uma crise de professores do ensino técnico no país, e precisavam de formar, urgentemente, docentes. Eu frequentei o curso mas depois percebi que, no fim, seríamos obrigados a dar aulas. Fui um pouco rebelde porque não fazia sentido ser obrigado a ser o que eu não queria.
Desisti quase no fim do curso porque compreendi que se concluísse seria obrigado a responder a um chamamento, leccionar, para o qual não estava disposto. As condições eram completamente irracionais. Os salários propostos aos potenciais professores eram absurdos. Não eram oferecidas as mínimas condições pelo menos para sobreviver. Foi uma fase de muita demagogia. Então, eu afastei-me.
@Verdade: Sacrificou a docência pela música? Como foi?
CN: Já vinha a cantar antes. Quando era estudante actuava nas boates à noite e ia à escola durante o dia. A experiência – sobretudo por causa da gestão do tempo – foi complicada, mas também muito boa porque me ensinou a saber orientar a minha vida. Nessa altura eu não tinha dinheiro e não podia continuar a depender dos meus pais. Ainda adolescente, comecei a ganhar consciência de que eu devia ser um bom profissional. Por esse lado, a experiência foi boa.
@Verdade: Na década de 1980, o seu grupo Mbila fez muito sucesso. Quer falar-nos desse episódio? O que ditou o fim da colectividade?
CN: Não houve nenhum motivo. Nós não decretámos o fim do grupo. O que sucedeu foi que, por força das circunstâncias, acabámos por nos espalhar. Então, praticamente, o fim do Mbila coincide com a minha partida para Portugal. Mas antes disso as coisas já se complicavam porque não havia recursos.
@Verdade: Como eram os concertos na altura?
CN: O nosso grupo possuía uma forma peculiar de se organizar. Nós éramos uma família auto-suficiente. Não dependíamos de patrocínios. Organizávamos digressões de Maputo a Xai-Xai, Inhambane e Beira. Devido ao contexto de crise nacional em que vivíamos, criámos uma estrutura de trabalho diferente.
Não dependíamos de cachês. Tínhamos uma conta bancária do grupo a partir da qual – ao invés de ter um cachê no final de cada espectáculo – pagávamos os salários dos artistas. Portanto, possuíamos uma banda com uma estrutura irregular para aquela época. Não sei se, hoje, existem colectividades culturais desta natureza no país. É importante que se comece a pensar nessa forma de trabalhar.
A minha vida estava degradada
@Verdade: O que ditou a sua permanência em Portugal?
CN: Quando parti para Lisboa foi para reforçar a Associação de Sopros – um projecto dos Ghorwane de gravação dum disco ao qual tinha sido convidado – a fim de tocar trombone. Era a terceira viagem que eu fazia para a Europa. Trazia más recordações das viagens anteriores realizadas no âmbito de digressões musicais. Quando cheguei a Portugal, a minha vida estava degradada em Moçambique. Senti que não valia a pena voltar naquela altura, porque não tinha condições sequer para a minha subsistência no país, muito menos para assegurar uma carreira musical.
@Verdade: E decidiu ficar por lá?
CN: Foi isso que me moveu, à semelhança de muito moçambicanos que tiveram de emigrar, para não dizer fugir. Nós estávamos à procura de refúgio. É preciso recordar que o país estava em conflito armado que só interessava aos seus mentores. Essa foi outra razão que me instigou a abandonar o país. Por opção própria, uma expressão de rebeldia, não fui militar. Foi preciso muita coragem para confrontar essa realidade.
@Verdade: Como foi ser estrangeiro, em Portugal, nos primeiros anos?
CN: A minha vida até à adolescência foi passada num Moçambique colonial. Por isso, Portugal não era um país novo nem especial para mim. Quando cheguei encontrei algumas pessoas conhecidas e, por causa delas, a minha integração foi relativamente fácil. Mas, na música, para começar, foi difícil porque – como se diz na gíria – eu caí de pára-quedas. Comecei do zero. Tive que pegar mesmo no duro. Desenvolvi actividades que não tinham nada a ver com a arte.
Teria sido delinquente
@Verdade: Quer citar alguns exemplos de tais actividades?
CN: Fui ajudante nas obras de construção civil. É uma fase que também me orgulha porque – se eu fosse pobre de espírito – podia ter sido um delinquente. ´Penso que foram experiências edificantes. Não desejo que alguém experimente peripécias que não planeou para a sua vida, mas sinto que elas, às vezes, edificam a personalidade. Talvez, se a vida tivesse sido um mar de rosas para mim, eu teria, hoje, uma forma leviana de encará- la. Não ter tido uma casa, um lar para viver mesmo tendo um filho, uma família – até conseguir isso – foi uma experiência horrível que me serviu de campo de treinamento.
@Verdade: Arrependeu-se de ter “abandonado” o país?
CN: Não! Sempre quis voltar a Moçambique. A minha vontade ¬– e acho que é da maioria das pessoas – era que houvesse, no país, condições para que pudéssemos viver bem e em paz. O meu desejo era de nunca ter saído de Moçambique. Isso não era possível naquela altura. Hoje, temos a paz porque as armas se calaram, mas há muitas carências sociais.
Acredito que mesmo nos dias actuais há pessoas que são obrigadas a partir para a África do Sul a fim de encontrar trabalho. As pessoas têm vontade de regressar, mas, em Moçambique, não encontram melhores condições para viver. Esse, por exemplo, é o meu caso.
Temos menos dignidade
@Verdade: Então, almeja regressar a Moçambique?
CN: Eu nunca quis sair de Moçambique. As circunstâncias é que me forçaram a emigrar. @Verdade: Neste momento não há condições para retornar?
CN: Eu tenho de criar as minhas condições materiais. É claro que isso acarreta custos e leva o seu tempo. Por aquilo que passei em Portugal sei que todos nós precisamos de, antes de agir, premeditar.
O nosso país é muito bonito – todos sabemos, como também sabemos que neste mundo há muitas rasteiras. Talvez nos dias que correm haja muito mais complicações. É verdade que hoje há melhores condições materiais em Moçambique, mas, na minha opinião, perdemos muito em termos de dignidade.