Tenho acompanhado com muita atenção alguns líderes de organizações do nosso país, sobre tudo de partidos políticos, a defenderem a ideia de que os seus membros devem somente expressar-se dentro dos órgãos instituídos nas suas organizações. Há um tempo, Manuel de Araújo defendeu, perante os órgãos de comunicação social, a ideia segundo a qual o chefe da bancada parlamentar do seu partido na Assembleia da República deveria ser um deputado proveniente do círculo eleitoral da Zambézia, e apresentou os seus argumentos. Entretanto, a liderança do seu partido ignorou os seus fundamentos e a resposta foi que ele não expôs a sua ideia dentro dos órgãos do partido.
Recentemente, na IV Sessão Ordinária do Comité Central da Frelimo, o então presidente criticou severamente os camaradas “sobretudo os mais barulhentos”, como ele próprio salientou, que apresentam publicamente a suas ideias consolidando a visão de que somente devem apresentar as suas ideias nos órgãos e reafirmou a tese de que “somente fazemos o que os nossos órgãos nos mandam”. Alguns membros entrevistados logo em seguida, sobretudo os mais jovens, limitavam-se a afirmar que deram as suas opiniões dentro do comité e nada mais podiam falar, o que significa que alinhavam com o discurso do então presidente.
Escrevo esta opinião para defender a ilusão desta ideia de somente falar dentro dos órgãos e socorro-me do pensamento de um conceituado filósofo que marca a transição da época moderna para a contemporânea: Immanuel Kant (1724 – 1804). Este, no auge da época do iluminismo, como corrente emancipadora do homem, colocava no indivíduo a responsabilidade da sua libertação, na decisão e coragem de servir-se de si mesmo, no saber ousar e no ter a coragem de fazer o uso da própria razão.
Neste âmbito, Kant fazia a distinção necessária entre o uso público e o uso privado da Razão. O uso público da razão é aquele que qualquer homem faz enquanto sábio, enquanto instruído. Significa que como sábio o homem pode expressar livremente o seu pensamento, em qualquer contexto e para qualquer público-alvo, ou seja, pode falar ao mundo. No uso público, o homem goza de ilimitada liberdade de fazer uso da sua razão e de falar em seu próprio nome. Já o uso privado da razão é aquele que alguém faz a partir de um cargo a ele confiado, de uma função dentro das instituições, para ser mais exacto, dentro dos órgãos. Este é sempre um uso doméstico. Exercendo uma função o homem deve obedecer aos critérios impostos e, nisso, não é livre. Entretanto, enquanto sábio o homem goza de ilimitada liberdade.
Estas considerações de Kant levam-nos a algumas ilações: primeiro, é preciso lembrar que o uso público da razão é independente da função, cargo, raça, religião, etnia etc.Qualquer indivíduo pode apresentar livremente e em qualquer circunstância o que pensa sobre qualquer assunto. Este uso público da razão representa a plenitude da liberdade de expressão e de pensamento e não pode ser limitado por ninguém e por nada. Daí que é ilusória e infundada a pretensão de querer que as pessoas falem somente dentro dos órgãos porque isso significaria limitar a liberdade do uso pleno da razão.
Em segundo lugar, temos que considerar que nem todos os membros das organizações, seja qual for, fazem parte dos órgãos e, embora tenham os seus representantes, isso não significa que estes vinculam necessariamente as suas opiniões. Logo, no uso privado da razão as ideias dos que não fazem parte dos órgãos estão condenadas ao silêncio.
Em terceiro e, para finalizar, as formalidades que existem dentro dos órgãos – refiro-me à não frequência das suas reuniões, protocolos e pouco tempo de discussão – não permitem que, mesmo os que fazem parte dos órgãos, expressem exaustivamente as suas opiniões.
Portanto, não sei quais são as intenções dos que defendem somente a discussão dentro dos órgãos, que significa somente o uso privado da razão, mas é importante que saibamos que existe o uso público da razão que é o mais elevado âmbito do uso da racionalidade humana e é uma das mais nobres conquistas humanas. Cabe a cada um escolher se pretende simplesmente fazer uso doméstico, limitado e mesquinho da sua razão ou então, tornar-se sábio, instruído e falar ao mundo.
Para todos os efeitos, faço um apelo para que asseguremos que este uso público da razão se mantenha e passe para futuras gerações. Por Otto da Cruz Thumbo