Calane da Silva encontra-se em Inhambane a passar as suas férias sabáticas. Tem dado palestras, ao mesmo tempo que interage em espiritismo, e considera a cidade um apouco apática. “O que, de certa forma, entristece”. Em 2012, venceu o Prémio Carreira “José Craveirinha”. Por isso, não podíamos perder a oportunidade de entrevistá-lo.
@Verdade: Sinto-me mais confortável ao falar contigo como jornalista e escritor, não como académico. Quais são as razões que te levaram a escolher a cidade de Inhambane para passares as férias sabáticas?
Calane da Silva (CdS): As razões foram e são várias. Primeiro, porque gosto da cidade que conheci ainda jovem, pois vim até cá, pela primeira vez, no início dos anos 60 com os meus colegas e a direcção cultural do antigo Liceu António Enes (actual Escola Secundária Francisco Manyanga) apresentar uma peça de teatro, fazer um recital de poesia e dar um espectáculo de música coral com o nosso orfeão liceal do qual também fazia parte.
O encontro foi como um amor à primeira vista, não apenas em relação à historicidade da cidade mas também às suas gentes, à arquitectura da antiga zona urbanizada, às suas zonas suburbanas com edificações típicas muito singulares trabalhadas em madeira, caniço e folhas de palmeira tanto para a cercadura dos quintais como para a cobertura das casas, diferentes do que se fazia em Lourenço Marques, actual Maputo. Em segundo lugar, fui atraído pela limpeza da urbe que ainda se mantém. Encantava-me ver as pessoas, quer na parte urbana quer, sobretudo, na parte suburbana a varrerem, todos os dias, as ruas defronte dos seus quintais.
A terceira e última razão é que Inhambane é a cidade onde a minha esposa – que apesar de ser natural de Xinavane – viveu durante a sua meninice e juventude, guardando lembranças inapagáveis. Por outro lado, Inhambane é uma cidade rodeada pelo oceano Índico e – embora eu goste das zonas interiores do país – o mar cativa-me e dá-me uma visão sempre alargada do mundo. É, no fim, uma bela e sossegada cidade para se meditar, escrever e sonhar.
@Verdade: Logo à tua chegada, criaste alguma expectativa com a abertura de um café com uma esplanada fantástica que iria transformar-se, segundo os teus planos, num espaço cultural. Em pouco tempo esse lugar fechou. Porquê?
CdS: É verdade! Nós temos e fazemos planos para a nossa vida e esquecemos de que a vida também tem e faz planos para nós. Trata-se de um café que se chamaria “Boa Gente”. O mesmo foi criado para a Mila, porque sempre foi um sonho da minha esposa – que conhece e sabe como ninguém cozinhar as iguarias, pratos típicos, doces e salgados desta zona do país – que teria, assim, a oportunidade de concretizá-lo. Acontece que ela padece de um problema sério de saúde, sobretudo nos joelhos e na coluna, um mal que se agravou de tal maneira que ela, infelizmente, teve de desistir deste projecto.
Ainda chegámos a entregar a gerência a alguém, mas, como todos nós sabemos, “é o olho do dono que engorda o gado”. Por outro lado, dentro desse projecto da minha esposa eu entraria, fundamentalmente, como dinamizador cultural, com a apresentação de recitais de poesia, de eventos de música, de lançamento de livros e realização de exposições de arte, o que iria animar de maneira singular a cidade.
@Verdade: A cidade de Inhambane que encontraste corresponde – em termos físico-geográficos e, sobretudo, culturais – às tuas expectativas? Qual é a tua relação com o Xiphefu?
CdS: De facto, por contactos e informações que já tinha e das breves estadas nesta cidade em anos anteriores, eu sabia da existência de uma certa apatia cultural a vários níveis o que me entristecia, uma vez que Inhambane já tem um estabelecimento de ensino superior que é a Escola Superior de Hotelaria e Turismo e que é uma área profissional, intrinsecamente, ligada às questões culturais. Em termos físicos e geográficos não mudou muito na sua antiga parte urbanizada e histórica.
Contudo, nos últimos anos, tenho vindo a acompanhar um desenvolvimento urbano em novas áreas, mas, infelizmente, é um desenvolvimento caótico em que há uma expansão para novas zonas mas sem se obedecer a um plano urbanístico, arquitectonicamente, bem delineado, com ruas largas, praças e avenidas, locais para o desporto, o comércio e a indústria, possibilitando também novos acessos para a entrada na cidade.
Até agora a entrada para a cidade é servida por uma única via que logo depois do velho hospital está sujeita a uma derrocada com consequências trágicas se não forem efectuadas obras urgentes de reparação e consolidação da encosta. Embora se sinta entre os jovens essa necessidade de dar mais vida através da realização de mais eventos artísticos, em termos artístico-culturais esperava mais.
Por isso, logo que cheguei, entrei em contacto com os elementos da Associação Cultural Xiphefu e propus apoiá-los em vários sentidos e, fundamentalmente, no ressurgimento da sua revista com o mesmo nome que há mais de 10 anos não é editada. Fizemos reuniões, fui a Maputo pedir cotações a algumas gráficas, reuni(mos) material suficiente para a nova edição e, inclusive, alguém para fazer a paginação; fui entregar cartas que fiz e foram assinadas por um dos antigos dirigentes da associação, nas empresas que estavam dispostas a financiar este novo número.
Sobre a reanimação do Xiphefu, recordo-me de que sempre insisti dizendo que não pretendia assumir qualquer protagonismo e, por isso, deixava a selecção dos textos e a escrita dos editoriais nas mãos dos antigos responsáveis pela edição da revista. Parece que fiz mal, pois desde Março que temos tudo organizado, e a edição, cuja responsabilidade está nas referidas mãos, não sai.
Mas esta atitude não me desanimou nem me desanima pois até agora já realizei palestras em vários estabelecimentos de ensino, quer secundários, quer superiores, não só em Inhambane mas também na cidade de Maxixe sobre diversos temas de interesse cultural para a província e suas gentes; estou a organizar uma exposição de artes plásticas em homenagem a um pintor local, já falecido, de nome Amaral. Ao mesmo tempo, com alguns alunos da universidade, estou a preparar um sarau de poesia que será levado para vários locais e estabelecimentos de ensino.
@Verdade: Como alternativa à provável inviabilidade de te juntares ao Xiphefu irias criar a revista “Bela nhumbane”. Como está este projecto?
CdS: Este projecto nasceu em conversa contigo, Alexandre Chaúque. Ele vai amadurecendo e, provavelmente, serás tu um dos grandes dinamizadores. Estou a pensar que o “Bela nhumbane” – que significa “entrem e sintam-se em casa” – seria, numa primeira fase, uma publicação virtual, electrónica, de carácter cultural, mas com espaço para outros temas, uma vez que o conceito de cultura é amplo. Logo que, com a tua ajuda, se encontrar alguém que domine o grafismo computacional e que ame o projecto, sem pensar, nesta fase inicial, em qualquer lucro com a publicação do mesmo, o jornal vai arrancar.
@Verdade: Como tem sido o teu dia-a-dia aqui na “Terra da Boa Gente”?
CdS: Estou empenhado em avançar com duas obras de investigação e de âmbito académico que tenho em mãos e de vez em quando vou escrevendo um pouco de ficção narrativa, melhor dito, vou adiantando um romance que já tinha iniciado e que está parado desde o lançamento do “Nyembête ou as Cores da Lágrima”.
Por outro lado, como sabes, eu pertenço e tenho responsabilidades num grupo espiritual e de solidariedade, pelo que já estou a trabalhar com vários jovens da cidade em acções de solidariedade e caridade junto de crianças carenciadas, assim como na realização de reuniões e palestras com toda a classe de pessoas no âmbito daquilo que se chama ciência espiritual.
Tenho igualmente dado, à medida das minhas possibilidades e disponibilidades, uma contribuição a nível académico junto de estabelecimentos de ensino superior e secundário, uma colaboração que me pedem tanto na Maxixe como aqui na cidade de Inhambane e arredores. E, claro, a leitura de obras de jovens escritores que me fazem chegar às mãos para apreciação.
@Verdade: Ganhaste, no ano passado, o Prémio Carreira José Craveirinha. O que isso significa para ti?
CdS: Qualquer prémio ou diploma de honra que recebemos tem um significado; para mim significa mais responsabilidade para comigo mesmo e para com todos os outros que me rodeiam e a quem sirvo. Porque me sinto e sempre me senti um ser humano servidor de outros seres humanos e que não se serve dos outros para viver.
É claro que, como ser humano, ainda não totalmente desapegado de alguns valores impostos pela sociedade, senti-me honrado e gratificado com o galardão que tem como patrono o nome do maior poeta moçambicano, José Craveirinha, e, mais do que isso, do nome de uma pessoa que foi um grande amigo meu, um companheiro de ideais políticas e sociais.
@Verdadae: Recentemente, em alusão ao lançamento de mais uma obra de Craveirinha, o estudioso de Letras Francisco Noa elogiou a tua capacidade de deixar primeiro que as obras amadureçam antes de publicá-las, criticando o facto de, actualmente, os jovens terem a pressa de publicar, o que, consequentemente, tem impacto na qualidade da obra. Comungas dessa ideia?
CdS: Qualquer afirmação é feita em determinados contextos. Em princípio, não discordo do meu colega Francisco Noa, por quem nutro uma admiração intelectual sincera. Efectivamente, temos assistido a esse anseio de publicar depressa sem se deixar amadurecer a obra dentro de nós. Se isso é verdade, temos também de recordar que os mais antigos e os nomes mais actuais e sonantes da nossa literatura começaram a publicar muito jovens os respectivos livros, obras que são referências literárias nacionais.
Tomo como exemplo o Luís Bernardo e a sua obra “Nós Matámos o Cão Tinhoso” e alguém de uma geração pós-independência como o poeta Eduardo White, autor das obras “Amar sobre o Índico” e “País de Mim”. Ambos publicaram as obras ainda muito jovens, pouco maduros ainda, mas são obras com a qualidade que todos nós reconhecemos. É claro que não podemos generalizar.
Contudo, um dos problemas de que enferma grande parte dos jovens candidatos a escritores em Moçambique diz respeito, por um lado, a uma assinalável falta de competência linguística – proficiência no idioma que escolheram como instrumento de trabalho – e, por outro, por uma grande lacuna em termos de cultura geral que resulta da falta de leitura de obras não só literárias.
Estes factores conjugados impedem que o jovem escritor possa ter uma consciência crítica do que cria, do que ele produz cultural e artisticamente, seja do ponto de vista linguístico, estético, temático ou ideológico. Não tem, de facto, paciência para depois de terminar qualquer discurso narrativo, poético ou dramático, deixar por uns tempos a obra na gaveta e continuar a ler com mais afinco para que, ao fim de alguns meses após essas leituras, regressar à sua obra e observar melhor o que escreveu.
Isso possibilitar-lhe-ia uma melhor capacidade analítica e crítica do que fez e do que faz. Aqui, em Inhambane, tenho insistido com os jovens para fazerem esse percurso de espera e empenhamento intelectual e estético através da leitura, do estudo e interpretação das obras que lêem e até tem acontecido que alguns deles aceitaram o desafio e já me entregaram textos muito interessantes, quer poéticos, quer narrativos.
@Verdade: Achas que os intelectuais moçambicanos estão a desempenhar, com a pujança que lhes é exigida, a sua missão, que é de questionar o Governo e dar luzes à sociedade e ao próprio Governo? Alguém veio dizer um dia que em Moçambique não há intelectuais ou se os há, estão arrebanhados pelo Poder e os que não estão têm medo de se pronunciar. O que é que dizes sobre isso?
CdS: A “missão” dos intelectuais, se é que se deve ter alguma e, particularmente, essa que dizes ser de questionar o Governo é, como tudo na vida, relativa. Um cidadão intelectualiza-se para questionar os governos? Por outro lado, será que só os governos são questionáveis? E porque não, igualmente, as próprias sociedades e comunidades humanas que escolhem, que permitem a formação de certos governos para as administrar, as representar e as conduzir económica e socialmente?
O intelectual existe para julgar, ser juiz de outros, ou para estudar e compreender o que lhe rodeia, seja o Homem a Natureza e o Universo? É claro que o intelectual pode, efectivamente, ser um elemento activo de mudanças pessoais e sociais, nacionais e mesmo internacionais. Mas os modos e os métodos não seguem padrões pré-estabelecidos, seja na forma das aludidas “missões”, seja no belicismo de palavras e gestos. Como é que o intelectual se posiciona perante ele mesmo e os outros? Esta última parte da minha interrogação retórica está mais relacionada com a tua questão de “dar luz à sociedade”.
E dar luz significa ser produtor e criador dessa energia luminosa e ser igualmente um reflector dessa luz, ou seja, ser exemplo de inteligência e conhecimentos, ser pedagogo de si e dos outros, através da sua própria conduta pessoal e social. Ser espelho que reflicta o seu carácter onde a ética e a honra, a dignidade e a incorruptibilidade, mas, fundamentalmente, a bondade e o Amor sejam seus paradigmas, totalmente, assimilados e constantemente postos em prática no quotidiano das suas/nossas vidas.
Mas isto não pode nem deve ser apenas apanágio dos intelectuais, mas de todo o ser humano. E a partir daqui há todo um conjunto de conceitos, filosofias e ideologias (políticas ou espirituais) que se podem tecer e considerar, mas o espaço aqui não nos permite. A vida do intelectual, assim como a de toda a gente, deve pautar-se pela responsabilidade no seu trabalho, na criação e produção de coisas boas e novas para a transformação das sociedades e do próprio Homem.
Mas isso é também extensivo ao camponês ou ao simples operário, a todos os trabalhadores, a todas as pessoas . Ser intelectual também pode e deve significar ser Cidadão do Mundo e não apenas do seu país, do seu partido, da sua religião, da sua etnia ou da cor da sua pele. Defender ideais e utopias sempre foi intrínseco ao ser humano, mas quando essa defesa vai para além do ético, se significa destruir física e psicologicamente o outro que não concorda com as nossas ideias, ideologias e utopias, torna-se muitas vezes um acto criminoso e indigno do ser humano.
Deste modo, mesmo em relação à tua última questão sobre a subordinação ao Poder, “arrebanhados pelo Poder” como dizes, é um facto que acontece em todas as nações, em todos as comunidades e até nas simples associações, sejam culturais ou outras. Não sendo um mal necessário é uma situação que, em princípio, não devia acontecer, mas, infelizmente, acontece.
Pertenço a uma geração que pressentiu na filosofia marxista um caminho ideológico que podia libertar o Homem, ou seja, que podia fazer com que o Homem deixasse de ser lobo do Homem. E nesse trajecto para essa utopia alguns desses intelectuais não só viraram pessoas que cometeram excessos e alguns deles, que fundaram partidos marxistas, acabaram por ser agentes do Poder, com todas as implicações boas e más inerentes. Por outro lado, nós intelectuais ditos de “esquerda” não tolerávamos ideologias de “direita”, afirmávamos mesmo que um intelectual que se prezasse não podia ser um Homem ligado à direita política.
Depois… aparece-nos um intelectual não ligado à “esquerda”, um erudito de mérito como um Jorge Luís Borges… como defini-lo? É evidente que se alguém tem compromissos com algum partido governamental, com alguma religião, etnia, ou grupo “racial”, ficará, como intelectual, menos livre de actuar, menos descomprometido para determinadas lutas ou resistências contra as injustiças, os crimes, as corrupções. Por conseguinte, o que disse nos parágrafos anteriores torna-se assim mais compreensível e concludente sobre esta matéria.