De há tempos para cá, um número considerável de pais e encarregados de educação recorre aos serviços de transporte escolar para os seus filhos. Paralelamente a isso, os desmandos cometidos pelos indivíduos encarregues de conduzir as viaturas nas quais os petizes viajam de casa para a escola e vice-versa são preocupantes. Por exemplo, eles tocam música a um volume ensurdecedor enquanto os meninos dançam inocentemente, sentados ou de pé, e protagonizam manobras perigosas. Foi esta última acção, punível nos termos do Código de Estrada, que tirou, precocemente, Hortência Magaia do mundo dos vivos, no dia 03 de Julho em curso, no bairro de Laulane, na capital do país, numa altura em que gozava de um dos seus direitos: brincar.
Aquela foi uma data horrorosamente inesquecível para a família Magaia. A menina, de apenas um ano e oito meses de vida, foi atropelada mortalmente por um condutor, é bom que se diga, irresponsável, defronte da sua residência.
A morte da criança que sonhava ser médica quando crescesse, segundo a progenitora, Caldimira Inguane, de 27 anos de idade, deixou claro que os transportes escolares são, em parte, um autêntico perigo para os filhos dos que confiam nos serviços que prestam assim como para os transeuntes. Depois do sinistro, o motorista em alusão cujo nome e a matrícula da viatura por si conduzida não conseguimos apurar entregou-se à Polícia por temer ser linchado pela população.
Claudina Arão é vizinha da mãe da vítima e foi quem presenciou a tragédia. À nossa Reportagem, ela contou, com muita tristeza, que por volta das 11horas daquele dia, Hortência saiu de casa com um prato de comida na mão e sentou-se na rua em frente do domicílio dos pais. Depois de se alimentar deitou-se no mesmo lugar como sempre o faz com alguns amiguinhos da sua idade. Passado algum tempo, as outras crianças dispersaram-se e a menor continuou deitada a brincar com areia.
A nossa interlocutora observava tudo a partir da sua habitação numa altura em que estava a preparar alface para o pequeno-almoço, uma vez que acabava de voltar da machamba. De repente, uma viatura de marca Toyota Hiace (minibus), que transporta alunos, manobrou à marcha atrás e a alta velocidade no local onde a criança a que nos referimos estava a brincar.
No mesmo instante, Elsinha, neta de Claudina, entrou no quintal a chorar e deu a triste notícia, a morte de Hortência por atropelamento, ou seja, o carro passou por cima da menina cujos restos mortais jazem no Cemitério Romão, em Maputo, desde a última sexta-feira, 05 Julho. “Primeiro foi o pneu de trás e depois o da frente, que pôs fim à vida da criança”, disse a nossa entrevistada, para quem o motorista ao aperceber-se do sucedido fugiu para parte incerta.
A petiza vomitou tudo o que acabava de comer, defecou, os olhos sobressaíram e o sangue inundou o sítio onde estava estatelada e sem nenhum sinal de vida, para sempre.
“Quando me aproximei da criança percebi que estava morta e que nenhuma intervenção médica poderia fazê-la voltar à vida”, contou Claudina com o rosto enrugado de consternação. Momentos depois apareceu um agente da Polícia de Protecção e mais tarde outro de Trânsito, e no fim a mãe da vítima. O desespero da senhora foi preocupante e de dar pena. Uma multidão acorreu para ver de perto o que acabava de acontecer.
Caldimira sentiu o chão a fugir-lhe dos pés, chorou e gemeu de dor na altura em a Polícia estava a transportar o corpo para a morgue do Hospital Geral de Mavalane.
A senhora exige justiça
A progenitora da menina atropelada mortalmente é viúva e diariamente percorre as artérias da cidade de Maputo a vender pão e pastéis feitos com base em feijão. O proprietário da viatura só teve conhecimento do problema no dia seguinte, através da Polícia, e custeou as despesas do funeral.
“Não quero que me paguem pela morte da minha filha porque a vida dela não tem preço e a dor pela qual a família está a passar é intensa”, desabafou a cidadã que disse estar desesperada e sem saber o que fazer para que haja justiça.
Polícia condena a atitude do condutor
O porta-voz da Polícia da República de Moçambique (PRM) a nível da cidade de Maputo, Orlando Modumane, disse-nos que o facto de a pessoa que atropelou Hortência ter abandonado o corpo denota irresponsabilidade, insensibilidade, é deplorável e condenável porque nada justifica a indisciplina que os automobilistas têm cometido na via pública.
“São comportamentos de indivíduos desumanos”, classificou o polícia e indicou que nos primeiros seis meses deste ano houve nove casos de abandono de indivíduos atropelados na capital do país.
Segundo Modumane, é preciso que se adoptem acções eficazes para impedir que os automobilistas fujam das suas responsabilidades quando cometem desmandos na via pública, principalmente para que não deixem com falta de assistência médica imediata as vítimas de acidentes de viação devido à sua negligência.
O que diz a legislação sobre o caso?
O advogado José Caldeira explicou ao @Verdade que o automobilista que atropelou mortalmente Hortência Magaia poderá incorrer em dois processos-crime, nomeadamente o de abandono do sinistrado e o de violação do Código de Estrada.
Estes são, simultaneamente, agravantes para se comprovar que o automobilista agiu por negligência ou excedeu a velocidade prevista para o lugar onde ocorreu o acidente.
Por via disso, pode ser obrigado a indemnizar a família da vítima pelos danos causados, para além de responder também pelo crime de homicídio involuntário, caso a família reúna provas.
Segundo o jurista, o artigo 368 do Código Penal (homicídio involuntário) defende que “o homicídio involuntário, que alguém cometer ou de que for causa por sua imperícia, inconsideração, negligência, falta de destreza ou falta de observância de algum regulamento, será punido com a prisão de um mês a dois anos e multa correspondente”.
O número um do artigo 153 do Decreto-Lei número 01/2011, sobre o Código de Estrada, sustenta que num acidente de viação que resulte em morte, o condutor é punido com pena de prisão de um a três anos e multa correspondente.
Sobre o abandono do sinistrado, José Caldeira acrescentou que o artigo 154 do Decreto-Lei acima referido defende, no número um, que os condutores que abandonem voluntariamente as pessoas vítimas dos acidentes que tenham causado, total ou parcialmente danos, serão punidos:
a) “Com prisão e multa até dois anos, graduada em função do perigo sofrido pela vítima, perante a gravidade das lesões e a dificuldade de obter socorros, quando da omissão não resultar agravamento do mal ou resultar agravamento que não tenha como efeito a morte do sinistrado. Havendo agravamento, é este tomado em conta na graduação da pena”.
b) “Com prisão maior de dois a oito anos quando da omissão resultar a morte do sinistrado” e a alínea c) que diz que “o condutor será condenado com a pena do correspondente crime doloso de comissão por omissão quando o abandono ocorrer já depois de o automobilista se haver certificado dos seus prováveis resultados, aceitando-os ou considerando- os indiferentes”.