O primeiro som da timbila só se ouviu muito perto das 12 horas do dia 24, no início do festival anual que decorreu até 25, contra todos os preceitos traçados desde o princípio, quando tínhamos as orquestras afinadas já no dia anterior.
Alguns grupos chegaram ao local em cima da hora, ou mesmo depois do tempo aprazado, trazendo ao de cima as fragilidades que estes eventos denotam em cada ano que passa. O público também foi enganado. Badalou-se, durante uma semana, anunciando-se a presença no M’saho (nome chopi que levam os festivais de timbila), de um grupo de nyau vindo de Tete. Mas, além de o grupo não ter aparecido, ninguém nos soube explicar com clareza as razões. Disseram-nos que a ausência aconteceu porque o empresário que havia garantido a participação dos tetenses mostrou-se, à última da hora, indisponível. Rodrigues Mário, um dos dirigentes da AMIZAVA (Associação dos Naturais e Amigos de Zavala), afirmou que só soube da vinda (falhada) do grupo de nyau, no próprio local.
“Nós como AMIZAVA não chegámos a colocar essa possibilidade, ficámos surpreendidos quando nos disseram isso, daí que não lhe possa dar nenhuma explicação”.
De qualquer modo, os festivais de timbila precisam de ser repensados. Reestruturados. Sobretudo no que diz respeito à logística dos grupos. É preciso dar dignidade aos artistas, oferecendo-lhes boas condições de alojamento e alimentação, o que não se tem verificado ultimamente. E esse aspecto importante não foi acautelado neste festival realizado no último fim-de-semana. A timbila ocupa um lugar sagrado na UNESCO e no Mundo. É Património da Humanidade e, quando o discurso é dessa natureza, há que haver muita responsabilidade.
Não queremos tomar o passado como cavalo de batalha porque “os ventos do norte não movem moinhos”, embora seja necessário lembrar que já tivemos festivais com um nível assinalável, em que os artistas eram tratados como “meninos finos”, que são na verdade. Mas hoje por hoje, tudo isso degenerou. Os timbileiros são tratados com vulgaridade. E a vergonha desse processo todo vai ficar estampada no palco, onde está montado um alpendre sem imaginação. Feito mais ao sabor do improviso do que propriamente em obediência a um desenho de arquitectura.
Os festivais de timbila são anunciados a nível mundial. Para Quissico convergem pessoas de diversos cantos do globo e esse marketing, por si só, exige uma organização ao mais alto nível, não só em respeito aos que vão ao local, mas para valorizar um tesouro inalienável que é a timbila. É urgente que se reformule o palco. Quando as orquestras estão em acção, os assistentes têm dificuldades em contemplar livremente as Lagoas de Quissico, e o miradouro teve sempre a vocação de emprestar à vista e à alma o gozo de ver aquele paraíso. O alpendre instalado não dignifica esse Património da Humanidade, nem os moçambicanos. Os timbileiros não podem ser confinados, têm que evoluir num espaço mais amplo, onde possam dar total liberdade à sua execução. E aquele palco é parco.
A demora do Nkwayo
Nkwayo é o nome que se dá à cerimónia de abertura do festival. É uma espécie de prece. Faz-se uma selecção dos aristas de todos os grupos participantes que evoluem no palco ao som de um toque “slow”. É um hino. E só depois disso é que vem a cascata. Normalmente, os componentes do nkwayo ficam posicionados antes de serem anunciados pelo mestre de cerimónia (MC), mas até às 12horas não se faziam ao estrado, ainda não estavam organizados, o que vai contra as normas estabelecidas para o M’saho.
Ao vermos o tempo passar, quisemos saber de Rodrigues Mário os motivos da demora, e ele também não sabia. “Estamos à espera dos responsáveis, do nosso lado está tudo pronto”. Fomos ter com o director distrital da Cultura, e a resposta que tivemos foi a mais simples: “vamos começar daqui a pouco”.
A festa não podia iniciar sem a presença dos dirigentes políticos, e estes estavam atarefados nas eleições internas dos seus partidos com vista às “autárquicas”. Com a excepção do administrador (que apareceu tardiamente, com as pessoas cansadas e revoltadas por tanta demora), os outros dignitários, nomeadamente o governador e o ministro da Cultura, que eram esperados, fizeram-se representar por terceiros. Na verdade não são os políticos que fazem a Cultura, mas também a vocação deles não é dificultar o processo. O público e os artistas merecem o maior respeito. Pelo menos deixem as coisas acontecer no tempo programado.
A festa começa cedo
O princípio do M’saho é que tudo começa cedo. Já de madrugada ouve-se o som da timbila ecoando por toda a vila. O timbileiro é, por vocação, um artista com propensão para o transe. Entrega-se facilmente aos espíritos que o manipulam e não o deixam dormir em dias importantes. Mas desta vez os organizadores não permitiram que isso acontecesse. Até ao meio-dia nenhum toque se ouvia. Nem o nkwayo estava preparado. O chão de cimento que os artistas deviam pisar, com os pés nus, aumentava o aquecimento à medida que o sol ia subindo. E mesmo assim as pessoas não arredavam pé. Não queriam perder o frenesim, quando ele começasse.
Apesar destes problemas de programação e de logística demonstrados, as orquestras foram ao palco em respeito ao trabalho que sempre fizeram com amor. O seu desempenho foi de proa, o que nos leva a repetir que estes artistas merecem muito respeito. Não se pode esperar que falte um ou dois meses para se preparar o M’saho. É a partir de agora que tudo deve começar para o festival de 2014.
É importante que se pense seriamente no artista, que é o centro de todas as atenções. Não basta a sua alma, é necessário que essa alma seja acarinhada. Há toda a necessidade de se rever o palco, chamando para o efeito um arquitecto. Não se pode permitir que o cimento continue a dilacerar os pés dos nossos artistas, é preciso idealizar um piso mais confortável. E, se a timbila é bela, então todo o cenário à sua volta tem que ser belo. O belo atrai o belo. É necessário pensar-se também no fogo de artifício. Para a abertura e encerramento. Porque a timbila é uma celebração da Humanidade.
O alojamento
Este é o maior “calcanhar de Aquiles”. Desta vez Quissico abarrotou. Comeu-se carne até à exaustão. Degustaram-se iguarias japonesas, estranhas ao nosso paladar. Bebeu-se de tudo e festejou-se à larga. Mas há muita gente que ficou sem lugar para dormir. As poucas ofertas de acomodação ali existentes não chegaram para a procura, e este será um problema eterno porque Quissico, por natureza, é lugar efémero, e poucos serão aqueles que se vão arriscar a investir no alojamento.
Onyau deixou água na boca
Teriam sido duas manifestações culturais elevadas a Património Cultural Intangível da Humanidade a ocuparem o mesmo palco. Por um lado o nyau, por outro, a timbila, duas danças de mito que ultrapassam os Conservatórios. Mas esse sonho ficou adiado. Aqueles que esfregavam as mãos para ver ao vivo ao xirombo (bicho do mato, como também é designado o nyau), tiveram de engolir “toda a saliva que as papilas gustativas tinham produzido”. Não faz mal, fica para a próxima.
O zorre também foi adiado
As estruturas da Cultura em Inhambane lutam por promover o zorre (dança típica dos bitongas) a Património Cultural da Humanidade. Haviam programado um festival para o passado dia 11 do mês corrente na localidade de Cumbana, distrito de Jangamo, o qual não se realizou porque, segundo nos disseram, “está-se na preparação da visita do Chefe de Estado à província de Inhambane”.
Mesmo assim, o evento foi reprogramado para o próximo mês de Setembro no mesmo local. Porém, por aquilo que sabemos, o festival de zorre vai decorrer num espaço sem condições adequadas. E se os organizadores querem, de facto, fazer algo sério, então que não façam por fazer. Soubemos que o evento havia sido projectado para um lugar, ainda em Cumbana, que tem um palco montado aquando da realização dos jogos escolares. Só que essa infra-estrutura foi erguida num espaço privado e o dono do terreno não está interessado em voltar a cedê-lo. Foram encetadas conversações entre as estruturas locais e o proprietário, mas não produziram resultados positivos, levando a Direcção Provincial da Educação e Cultura em Inhambane a optar por outro lugar que não oferece as melhores condições.
A ideia de realizar este festival, segundo os promotores, surge da necessidade de se medir a “pulsação do zorre”. Até aqui está tudo bem. Mas se existe a pretensão de se realizar um festival, tem que haver seriedade. Se a alternativa de Cumbana não é viável, que se transfira para a cidade de Inhambane, onde as condições são bem diferentes. Bem melhores.