O título mais adequado para esta história podia ser “Paulo Nazareth procura África”. Afinal, sendo a nossa página reservada à publicação sobre a produção artística, deve-se sublimar esse aspecto. Mas que provas há de que o nome Awa Jeguakai Nrenda – sobre o qual o sujeito diz que é tradicional – não tem nada de arte? Nazareth é um artista brasileiro com uma vida impregnada por uma busca pelas suas ancestralidades africanas. Já esteve em Benin, Nigéria e na África do Sul. Agora está em Maputo, onde além de aprender algumas palavras da língua local, tem uma curiosidade: ver alguns hipopótamos a circular na cidade.
O contacto de Paulo Sérgio da Silva – é assim como o seu nome está escrito no assento de nascimento – começa em 2006. Primeiro visitou Benin, de onde, aproveitando-se da proximidade da fronteiras, passou para a Ningéria. Na África do Sul só permaneceu uma noite e hoje – graça a um arranjo da Escola Superior de Jornalismo que que realizou a IV Semana de Ciências de Comunicação, decorrida na primeira semana de Novembro.
No Brasil, a par de outros projectos, Paulo Nazareth dedica-se ao blog cultural Caderno de África, uma ferramenta a partir da qual o artista faz a representação cultural do continente africano. E é sobre isso que falou perante a comunidade que demandou a IV Semana das Ciência de Comunicação subordinada ao lema Comunicação, Arte e Cultura. A sua apresentação gerou algumas curiosidades – e nós – partindo das circunstâncias que marcam o seu interesse por África.
“Existem várias Áfricas e Maputo é uma delas, da mesma forma que em Minas Gerais há uma África levada que é diferente deste continente. No Brasil nós temos várias Áfricas. Por exemplo, na província onde eu morro, chamamos Quilombos às zonas habitadas pelos negros escravizados e que se rebelaram contra a escravidão. Eles criavam essas comunidades que se posicionam como lugares de resistência cultural, na medida em que os africanos preservavam as suas tradições”, começa por dizer Nazareth.
Recorde-se de que como esses grupos, que formavam novas comunidades no Brasil, originavam-se em diversas parte de África, dos seus encontros de miscigenação criavam-se novas formas de cultura, os Quilombos que polvilha(ra)m a região de Minas Gerais. É na província de Minas Gerais onde se encontra o Quilombo de Palmares, um dos mais importantes não só por ser grande, mas por simbolizar a resistência cultural afro-brasileira. Associado à morte, a 20 de Novembro de 1695, de Zumbi de Palmares que lutou pela liberdade dos negros, anualmente celebra-se nessa ocasião o Dia da Consciência Negra.
E não se fala sobre a Consciência Negra sem se invocar a capoeira. “Nós praticamos a capoeira-mãe, que se origina em Angola, com o intuito de preservar as raízes culturais dessa modalidade de dança. Mas também considera-se que a capoeira é afro-brasileira porque nasce no Brasil em resultado desse encontro entre a cultura africana e a brasileira”. Como qualifica-la? A capoeira é dança, luta, filosofia e movimento de consciencialização. Nesse sentido “nós pensamos em Angola não somente como corpo, mas como um conjunto de comportamentos”.
A consciência negra
A narrativa mundial sobre o assunto revela que, no Brasil, a escravatura foi abolida em 1888. Mas há fontes que asseguram que os movimentos libertários e da sublimação da consciência negra iniciaram muito antes. Até porque Zumbi de Palmares, o mais notável nesses movimentos, faleceu em 1695. É por essa razão que mesmo que a Princesa Isabel, a afilha do imperador português, tenha assinado a lei a favor da abolição da escravatura, a 13 de Maio, essa data não é reconhecida como representativa para os movimentos afro-brasileiros.
Instituiu-se o 20 de Novembro como Dia da Consciência Negra. Isto significa que esta busca pelas ancestralidades africanas é uma história muito antiga que se inicia com o surgimento dos movimentos de afirmação da consciência negra. Nesse sentido, no Brasil, quando se fala que alguém é negro não somente se refere à cor da sua pele, mas acima de tudo a sua ancestralidade.
“O problema é no que no Brasil – e em muitos lugares das Américas – existe a desvalorização dos negros. Eles são considerados menores em relação ao branco. Entretanto, o povo começou a constatar que o facto de alguém ser negro, não significa que é menos inteligente ou que a sua cultura é baixa. Por isso, as pessoas começam a lutar pela auto-afirmação da sua cultura, buscando olhar para si próprios como o resultado dessas misturas culturais”.
Nem todos os navios vão a Europa
Partindo da compreensão de que quando se sai do Brasil para os Estados Unidos, muitas vezes, não se reconhecem as possibilidades culturais que existem nos espaços fronteiriços, Paulo Nazareth criou um projecto voltado para esse reconhecimento. “A partir daí eu comecei a pensar em África. Criei um projecto que se chama Cara de Índio com o intuito de buscar nos indígenas as marcas da sua cultura, incluindo os indícios africanos. A iniciativa consiste no reconhecimento e no resgate da memória de África que se apagou ao longo do tempo nas Américas”.
A relevância de tal acção encontra-se na compreensão de que “quando se apaga a memória e a cultura do outro contribui-se para que essa pessoa se esqueça de si, não se rebele, nem se torne indignado com as injustiças que se fazem contra si”. Uma das questões que se defende num dos projectos de Nazareth tem a ver com o facto de que “eu não vou para a Europa sem passar pela África”. Depois da sua iniciativa anterior, Notícias de América, o seu nome como artista ficou popularizado no mundo, de tal sorte que apareceram convites para que se apresentasse na Europa.
“Infelizmente, eu nego deslocar-me ao velho continente porque se para lá eu for, o meu projecto morre: a sua alma dita que nem todos os barcos seguem para a Europa. Nem todos os navios seguem para os Estados Unidos. Existem outras rotas – e África é uma delas. Isso significa que o centro do mundo não é a Europa, mas é o lugar onde a pessoa se encontra”. Paulo Nazareth vive numa província de imigrantes, Minas Gerais, que para países como Portugal, Espanha e Inglaterra – onde buscam o trabalho – são uma mão-de-obra barata. “Não obstante, o meu projecto nega isso”.
“As pessoas constroem o seu sonho capitalista, no sentido de ganhar muito dinheiro para comprar uma série de bens. Mas o meu trabalho consiste em mostrar que os sonhos podem ser realizados nos seus países”, diz Nazareth que esclarece que “não estou a dizer que eu não possa ir a Europa, mas reservo-me o direito de ir e vir. Porque quando a gente vai nesses países, eles costumam negar-nos o direito de chegar e de lá estar. Investigam-nos procurando saber porque é que a pessoa quer estar e por quanto tempo irá ficar, como se fossemos criminosos”.
Os estereótipos
Um dos impactos do apagamento da memória sobre África – no Brasil e em qualquer parte do mundo – é o surgimento de estereótipos sobre este continente. Quais serão os principais? Sobre a questão Nazareth considera que se diz que “há muita fome em África e que as pessoas estão constantemente em conflitos militares”.
Por exemplo, “quando fiz a minha primeira viagem, houve pessoas que recearam que eu fosse morrer cá. Pensa-se que aqui é um local, onde há guerras constantes. Por isso, sempre que chega um africano – de Guiné, de Angola, Senegal – no Brasil, a tendência das pessoas é pensar que ele está a refugiar-se da fome e da guerra”.