A triste história teve o seu desfecho recentemente na cidade de Inhambane, depois de alguns anos de sofrimento devido a crenças que roçam o fanatismo. Uma mulher, cujo nome não citaremos em respeito à família e à sua alma também, morreu na casa dos pais depois de ter sido devolvida do hospital provincial onde esteve internada, porque os médicos, por ela ter chegado tarde demais, concluíram que já não havia nada a fazer com vista a regenerá-la. É uma morte que podia ser arrolada na lista de tantas outras que se registam no quotidiano do mundo, e por isso mesmo sem nada de especial. Mas o que nos move a contar este acontecimento, são os contornos aparentemente surreaslistas que ele assume.
Joice (chamemo-la assim) era uma mulher muito linda, escolhida entre os seus, para assumir o poder espiritual que lhe permitiria curar pessoas, defender a família e os demais, e ainda ter a capacidade de vaticinar o futuro. Mas essa eleição implicaria, por parte da visada, uma disciplina bastante rígida, que a bafejada não parecia predisposta a cumprir. A princípio ela mostrou-se relutante em enveredar por um caminho que lhe retiraria em grande parte a liberdade. Era uma menina moderna, conhecida em toda a cidade, não só pela sua espampanância, mas por via dos pais que pertencem a um clã respeitado. Ela sabia do seu valor escultural, da cobiça que gerava nos homens e da inveja de outras meninas que olhavam para Joice como uma princesa. E isso lhe permitia sonhar nas estrelas, sem as amarras daquilo que dizia ser supersticioso.
Tudo isso parecia um travão para obedecer ao desejo dos espíritos que ela nunca conheceu e de que nunca ouviu falar. Contudo, essas almas eram mais fortes que a donzela, que passou a adoecer e ficar desnorteada. Por ser desobediente. Os anciãos reuniram-se, consultaram curandeiros de paragens longínquas, e a resposta que tiveram é de que se a Joice se recusasse a receber este testemunho, desabaria sobre ela a doença e o sofrimento, e posteriormente a morte, que contaminaria aos outros da família. E, sendo assim, Joice só tinha duas escolhas, sofrer e morrer, ou aceitar ser conduzido por almas invisíveis e salvar-se do mal.
Foi difícil convencê-la, mas o padecimento que parecia não querer desvanecer, acabou fazendo-a mudar de ideias. Introduziram-na imediatamente nos rituais preliminares, perante anciãos e médiuns trazidos de Mambone e outros dos arredores, conhecidos pela sua imensa força mágica. Joice transformou-se em pouco tempo. Já não era vista na escola, muito menos nas farras onde era disputada por ser portadora de uma beleza arrebatadora. O corpo dela, no lugar de bambolear em grandes estilos nos caminhos por onde passava, entrava em transe para transmitir mensagens e presságios. Já não era a mesma. Em toda a cidade a notícia corria: Joice é curandeira.
Mas a notícia mais avalassadora foi quando ficou apta a trabalhar sozinha. Tinha que ir buscar as raízes, os unguentos, os amuletos e quejandos, no fundo do mar. E Joice foi ao fundo do mar. Ficou lá cerca de um mês, sem respirar o oxigénio da atmosfera, porém, sem que isso constituisse preocupação para os familiares que haviam sido informados do que estava a acontecer. A menina estava bem. Comia e bebia lá no fundo, na companhia dos animais marinhos e de outros seres humanos que lá habitam. Uns formando-se para voltar à terra, e outros estando lá definitivamente.
Foi um mês que parecia uma eternidade, até ao dia em que os mesmos curandeiros que a haviam dado a preparação inicial, foram novamente convocados para irem à Praia do Tofo, a fim de acolherem a médica tradicional que voltava para casa com todos os seus instrumentos de trabalho. Foram os curandeiros e muitos curiosos, que queriam ver a Joice emergindo das profundezas. À Praia do Tofo dirigiram-se ainda grupos de zorre, que tocaram e dançaram durante toda a noite, até que a menina, agora mulher dotada de poderes invulgares, apareceu, pisando a terra firme, carregada de objectos indiscritíveis. Cantou-se, dançou-se, comeu-se, bebeu-se, em celebração a uma nova vida que nascia na Joice.
Uma vida desregrada
Nos primeiros momentos esta curandeira era bastante solicitada. Ganhou fama em pouco tempo, mas toda essa aura foi efémera. Joice esqueceu-se dos conselhos que recebera, e recomeçou a sua vida em liberdade, sem obedecer aos espíritos que lhe guiavam. A sua relação matrimonial logo entrou em derrocada. Os negócios em que se meteu, mais tarde, também não foram longe. Procurou os copos para se embebedar ciclicamente como forma se esquecer as dores, mas a sua atitude era por demais impoderada que passou a entrar visivelmente em declínio, até que, nunca se saberá como, foi infectada pelo virus do HIV.
Nunca acreditou que Joice estivesse infectada. Mesmo com fortes sinais da doença ela continuou a beber. A beber em demasia. Não queria ir ao hospital fazer o teste. Como era curandeira, pensava cegamente que seria capaz de se curar com as raízes que dizia conhecer. Chegou a evocar a cinza como medicamento eficaz. Pior do que essa ignorância, entrou em rota de acusações, dizendo que a sua doença era maldição do feitiço, mas que tudo aquilo havia de passar, porque “comigo eles não brincam”.
Porém, era um grande paradoxo. Uma imensa hipocrisia. E sobretudo uma infinita estupidez. Porque enquanto Joice tentava desmentir a doença que lavrava em todo o seu corpo, os ossos iam, de forma avassaladora, tentando furar a carne para se exporem. Ela minguava. Encadaverizava-se. Mesmo assim continuava a dizer que aquilo não era nada. Dizia que aqueles que provocavam o seu sofrimento, iriam pagar bastante caro. E dizia mais, “mataram os meus irmãos, e agora me querem a mim. A mim é que não vão me comer!” Mas a doença era implacável, comia dela um pedaço em cada dia e, quando resolveu ir ao hospital, estava tudo consumado. Já não havia nada para devorar.
Um irmão também foi assim
Era um jovem cheio de energia. Capaz de enfrentar dois touros de uma só vez, mas esqueceu que um elefante inteiro pode sucumbir perante o incómodo de uma formiga. Ele também, como a irmã, agora, nunca acreditou que estivesse infectado, como os resultados vieram a demonstrar mais tarde, quando era muito tarde por demais. O jovem, de corpo atlético, quando começou a enfraquecer, também dizia que aquilo não era nada, que havia de passar.
Aliás, foi a própria irmã, neste momento, ausente deste mundo, que via no sofrimento do seu consanguíneo, a acção do feitiço. Para além da administração de raízes, davam-lhe cinza, com acusações como balas atiradas para várias direcções. Não se sabendo se atingiam o alvo certo ou não. Foram anos intermináveis de martírio, com o corpo a ser devastado visivelmente, mas o jovem não parava de beber. Bebia e fumava, dizendo que aquilo não era nada.
Dizia para os amigos, e para outros que estivessem por perto, “eu sei de onde é que vem isto, meu irmão, mas não te preocupes, cá se faz, cá se paga. Eu vou ficar bem.” Dizia estas palavras e ia beber. Fumava sem parar e perdia noites, sem acreditar nos que lhe diziam: “irmão, é bom fazeres o teste, pode ser que estejas infectado!”. Mwandro (como o vamos apelidar por motivos óbvios) descia devagarinho para a sepultura, e só quando estava quase dentro dela, é que foi ao hospital. E os médicos, da mesma forma que aconteceu com a sua irmã, não tinham armas para reverter a morte.
Mas a história que o leitor está a acompanhar é tão real como a própria dor. Mesmo que não queiramos acreditar, ela aconteceu, e deixou muitos comentários e sentimentos profundos de pesar nos habitantes da cidade de Inhambane, que a acompanharam. Dói mais ainda quando, depois do funeral da Joice, um dos irmãos, que vive actualmente o drama de desequilíbrios psico-emocionais, disse que o próximo a partir será ele. Já tinha morrido outro, antes da curandeira, vítima de prolongada doença, somando no total três irmãos que não resistiram à doença, e deram o último suspiro em menos de um ano.
No fundo do mar há mais!
Aquilo que parece um mito, é, inequivocamente, uma realidade. João Maguelane, um marinheiro reputado na baía de Inhambane, se estivesse vivo, havia de confirmar que já foi abordado, numa noite escura, e sem luar, por um homem cheio de algas, que ele reconheceu ser o Charique, afogado numa tarde de veraneio, em que se banhava com os amigos, já passavam muitos anos.
Eram dois tripulantes no barco capitaneado pelo próprio João Maguelane, quando se deu o episódio. Charique emergiu e susteve a embarcação que deslizava a favor do vento. Ficou com os dois braços descançados na borda, e pronunciou o nome de João Maguelane. Este, assustado e cheio de medo, reconheceu o homem que lhe tratava de forma familiar. Ficou petrificado, mas o que Charique queria era que o marinheiro fosse transmitir à sua família, que estava vivo e de boa saúde, e que um dia havia de voltar. Disse algumas palavras mais, com o barco imóvel e, quando terminou a mensagem, regressou ao fundo do mar, libertando os homens e a embarcação. Até hoje, Charique não reapareceu, presumindo-se que ainda esteja “lá em baixo”.
Casos de pessoas afogadas e nunca mais encontradas, existem na baía de Inhambane. Também há registo de cerimónias intensas realizadas com vista a resgatar esses seres, algumas delas (cerimónias) bem conseguidas, outras frustradas. E a pergunta que se coloca é, como é que esses humanos conseguem viver no fundo do mar? Até hoje ninguém soube nos responder com clareza, sabendo-se apenas que há pessoas levando vida de peixe.