Viver com dignidade é um direito de todo ser humano. Contudo, os idosos continuam invariavelmente submetidos a práticas tais como desamparo, privação de alimentos e vestuário, humilhação, discriminação, acusação de feitiçaria, exposição a condições precárias de higiene, agressões físicas, psicológicas, dentre outras acções que constituem um perigo de vida e que infringem os direitos desta camada social. Em Nampula, uma anciã que aparentava ter 60 anos de idade morreu como uma vira-lata, no último sábado, 09 de Novembro, depois de ter sido escorraçada de casa pelos familiares supostamente porque era feiticeira.
A vítima chamava-se Saha Abudo e residia na zona da Texmoque, na unidade comunal Nikuta, arredores da capital da região Norte de Moçambique. Ela perdeu a vida quase na rua como uma indigente, apesar de ter parentes. Os seus progenitores a expulsaram de casa alegadamente porque matou alguns netos com recurso à sua bruxaria. Supõe-se que a idosa tenha morrido por desgosto, fome e desidratação, uma vez que no lugar onde passou a habitar quando abandonou o domicílio dos filhos era completamente desumano e não dispunha de uma alimentação condigna.
O sofrimento de Saha Abudo começou no momento em que um dos netos, de apenas cinco anos de idade, ficou gravemente doente, em Setembro do ano em curso. Em meados de Outubro, a criança faleceu. Volvidas duas semanas após o seu enterro, outra menor, por sinal filha da irmã mais nova da idosa a que nos referimos, morreu devido a uma enfermidade que nem a medicina convencional conseguiu curar.
Depois desses dois episódios, os familiares de Saha Abudo acreditaram que a anciã era a principal responsável pelo infortúnio e sucessivas mortes na família. Um dos parentes sugeriu que a idosa, que não admitia aquilo de que era acusada, fosse levada a um curandeiro para que lhe administrassem o mondzo. Esta é uma prática tradicional, de há anos, de julgamento de feiticeiros e que consiste em dar de beber ao indiciado um líquido preparado com ervas a fim de deixá-lo num estado de desorientação para confessar tudo o que sabe ou fez de errado, incluindo o tange à magia negra.
Indica-se que a pessoa que bebe o mondzo dialoga consigo mesmo como se fosse um demente, pois a droga cria nela a impressão de estar a conversar com alguém que está a ver. Entretanto, refere-se que há caso de bruxaria em que os indivíduos submetidos a essa prática nem chegam a confessar os seus pecados.
Antes da sua morte, Saha Abudo disse ao @Verdade que nada de que era acusado foi confirmado naquela cerimónia. E, na manhã da terça-feira antepassada, as acusações agudizaram-se a ponto de a família da idosa pretender submeter a anciã ao outro mondzo, alegadamente porque o primeiro foi um fiasco e havia outro curandeiro, ido do distrito de Moma, que detinha poderes inimagináveis para desmascarar bruxas. Assim, Saha Abudo foi forçosamente administrada tal droga e instantes depois acusada de feitiçaria no meio de gente, facto que fez com que a filha mais nova abandonasse a casa por temer ser a próxima vítima.
De seguida, a idosa foi expulsa da residência sem piedade nenhuma. Devido à essa rejeição e rebaixamento, a vítima passou a viver numa cabana construída nas imediações da sua machamba, na unidade comunal Nikuta, sem condições mínimas de acomodação, onde o genro procurou por ela para pedir que não houvesse mais mortes na família, pois, caso contrário, ele faria justiça pelas próprias mãos.
Saha Abudo morreu já sem nenhum gosto pela vida porque as pessoas que mais amava, sobretudo os filhos, olhavam para ela como a causa dos seus males a ponto de desejar a sua morte. A acusação de que ela era feiticeira pendeu mais para o lado da verdade que para a mentira na medida em os vizinhos já olhavam para a anciã com desprezo.
Para além deste caso, no posto administrativo de Xinavane, na província de Maputo, uma idosa foi igualmente expulsa da sua casa, onde durante décadas criou e vivia com os filhos, supostamente porque era feiticeira e matara dois descendentes e um neto. Ela foi ameaçada de morte e o pior não aconteceu graças à intervenção das autoridades locais.
Não existem estatísticas oficias sobre as pessoas da terceira idade que são submetidas a maus tratos, deixadas à sua sorte e desprovidos de meios básicos para sobrevivência, porém, arriscamos dizer que a lista é extensa e acusação de feitiçaria, tal como aconteceu com Saha Abudo, constitui um dos mais recorrentes problemas que apoquentam esta faixa etária. Aliás, por causa do agravamento da violência contra os anciãos no país, o grosso desta camada social desacredita nas instituições e pessoas cuja tarefa é prover-lhes serviços mínimos de vida e amparo incondicional.
Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em todo o território moçambicano existe perto de um milhão e oitocentos mil idosos que sobrevive, cada, com uma renda média diária de apenas oito meticais. Desse número, 80 porcento vivem nas zonas rurais. Certamente, esta realidade não é vivida somente no país, mas, aqui, estar na terceira idade é deprimente na medida em que os idosos não têm condições mínimas de subsistência, sobretudo habitação, acesso à saúde, alimentação e vestuário.
E há no país pelo menos cinco mil anciãos que vivem uma situação de total abandono, vulnerabilidade, exclusão e encontra refúgio e meios de sobrevivência nas artérias dos centros urbanos, onde pedem esmola. São pessoas cujas famílias pouco se importam com elas, daí que, a maior dor dos indivíduos desta faixa etária prende-se com o facto de criarem filhos, contra todas as adversidades da vida, para mais tarde receberem como prémio a acusação de feitiçaria pelos próprios descendentes. Problemas como estes surgem, em parte, das fragilidades que caracterizam as políticas públicas para esta camada social.
A violência contra as pessoas da terceira idade é um fenómeno planetário. Entretanto, no caso de Moçambique, segundo um estudo do IESE, “em muitos casos governantes e outros fazedores de políticas públicas também não ajudam, pelo facto de estarem mais preocupados com questões de imediato ou curto prazo”. Há apelos recorrentes que orientam as famílias no sentido de cuidarem dos idosos e não lhes privarem de assistência social básica a que têm direito e o Governo aprovou, recentemente, a Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Pessoa Idosa, que prevê penas de prisão que variam de cinco dias a oito anos. O dispositivo, aprovado na generalidade pela Assembleia da República, esta a ser analisada na especialidade com vista a entrar em vigor.
Todavia, para além de que não será essa lei que vai refrear os maus-tratos a que as pessoas da terceira idade são sujeitas, ainda é preocupante o nível de violações impostas contra os anciãos. E os protagonistas desses actos abomináveis encontram-se nas nossas casas, nas unidades sanitárias, dentre outros lugares privados e públicos. A violência contra os idosos, que deriva ainda das dificuldades financeiras, acontece porque a sociedade considera a velhice como uma fase de “decadência” e, por conseguinte, um ancião é visto como um fardo numa família devido aos cuidados que necessita.
Contudo, parece que para aqueles que submetem os idosos a condições desumanas, à falta de comida e lhes privam de outros cuidados obrigatórios para a subsistência, as punições devem ser mais arrojadas que simples moralizações, pois, para pessoas sensatas, dificilmente cabe no intelecto que uma mãe ou um pai possa premeditadamente matar o próprio filho que criou com tanto sacrifício.